Connect with us

Moda

‘A inclusão começa na matrícula’: o que escolas e professores precisam saber sobre o autismo

Published

on

‘A inclusão começa na matrícula’: o que escolas e professores precisam saber sobre o autismo


Falar sobre inclusão é fácil — difícil é colocá-la em prática, principalmente quando se trata de alunos com autismo. A realidade das escolas brasileiras ainda está longe do ideal, e os desafios enfrentados por professores e famílias são muitos. No entanto, existem caminhos possíveis. E eles começam com uma palavra-chave: conhecimento.

Para a série especial de matérias do Abril Azul, campanha em conscientização ao autismo, a reportagem da Catraca Livre conversou com dois especialistas em educação inclusiva para pessoas com neurodivergências: João Lucas Lima, doutorando em Educação pela PUC-Rio e CEO do Instituto Neurodiversidade, e Eliane Sá Britto Bittencourt, professora, neuropsicopedagoga, ativista da causa autista e mãe de um jovem com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Ao longo das entrevistas, os dois educadores falam sobre os principais desafios enfrentados pelos professores, as estratégias pedagógicas eficazes, a importância da comunicação com as famílias, como lidar com crises sensoriais, os mitos sobre o autismo e o que de fato significa uma escola ser, na prática, inclusiva.

Para João Lucas Lima, de Nova Iguaçu (RJ), o maior obstáculo ainda é lidar com os comportamentos desafiadores típicos do autismo. “Crises e birras, desregulações sensoriais e o desinteresse nas tarefas são os pontos mais difíceis para os professores dentro da sala de aula”, afirma.

A professora Eliane Sá Britto Bittencourt, coordenadora do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab) em Pelotas (RS), acrescenta que o despreparo da formação inicial é um agravante: “Os cursos de licenciatura não têm na sua grade curricular disciplinas específicas que abordem o autismo. Falta conhecimento sobre as necessidades específicas desses alunos, recursos adequados e, muitas vezes, até o profissional de apoio na sala de aula.”

‘A inclusão começa na matrícula’: o que escolas e professores precisam saber sobre o autismo (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional)
‘A inclusão começa na matrícula’: o que escolas e professores precisam saber sobre o autismo (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional) – iStock/Prostock-Studio

Estratégias que funcionam

Se a inclusão ainda engatinha em muitas instituições, algumas estratégias têm se mostrado eficazes para transformar esse cenário. João Lucas destaca o Plano de Ensino Individualizado (PEI) como a principal ferramenta pedagógica para a inclusão. “É por meio dele que conseguimos avaliar as características de cada aluno, considerando o ambiente familiar, os interesses, os materiais específicos e as adaptações necessárias. Tudo isso com objetivos claros para cada estudante.”

Eliane, por sua vez, defende abordagens baseadas em clareza e previsibilidade. Segundo ela, alunos autistas se beneficiam de uma linguagem simples e direta, especialmente em avaliações. Além disso, destaca a importância de “proporcionar rotinas visuais, já que a consistência oferece segurança, previsibilidade e traz comportamento estável”. A quebra da rotina, alerta, pode gerar desregulação e crises.

Ela também recomenda adaptar os ambientes escolares, reduzindo estímulos sensoriais excessivos.

“Salas com muita informação e barulho podem trazer desconforto. O aluno autista pode não conseguir frequentar o refeitório por causa dos cheiros, e isso não significa que ele não quer merendar — significa que ele não consegue estar ali por questões sensoriais.”

Adaptações possíveis no cotidiano

Nem tudo depende de grandes reformas estruturais. Algumas mudanças simples no dia a dia escolar já fazem diferença. João Lucas sugere, por exemplo, substituir o sinal barulhento do recreio por uma música suave, oferecer abafadores de ruído, estruturar melhor a rotina e usar reforço positivo com base nos interesses do aluno. Outra prática eficaz é a mediação por pares — quando colegas neurotípicos ajudam os colegas com deficiência nas tarefas escolares.

Já Eliane lembra da importância de respeitar os mecanismos de autorregulação. “Comportamentos repetitivos, necessidade de movimento, manipulação de objetos específicos, saídas da sala de aula… tudo isso deve ser acolhido. São estratégias que o próprio aluno encontra para se regular.” A organização do ambiente também é fundamental: menos estímulos visuais, menos ruído, mais estrutura.

Crises sensoriais e socialização: como agir?

Lidar com crises autistas na escola é um dos pontos mais delicados do processo de inclusão. João Lucas recomenda um planejamento de prevenção baseado na identificação de gatilhos.

“É preciso entender se a crise foi causada por quebra de rotina, excesso de estímulo visual, barulho ou frustração por não conseguir realizar uma tarefa.”

Eliane complementa com um passo a passo prático: manter a calma, garantir a segurança da criança e dos colegas, usar comunicação visual e gestual, e reduzir os estímulos no ambiente. Ela também defende o registro sistemático das crises para identificar padrões e prevenir episódios futuros.

Sobre a socialização, ambos os especialistas são unânimes: é preciso respeitar as limitações do autismo, mas sem desistir de estimular a convivência. Eliane sugere ensinar habilidades sociais, como pedir para brincar ou participar de grupos.

“Haverá vezes que, mesmo com o convite, o autista prefira ficar sozinho — e tá tudo bem. Precisamos seguir tentando.”

João Lucas acredita que a inclusão dos colegas neurotípicos nesse processo também é essencial. “O incentivo a atividades em grupo, com colegas solidários, e o ensino de habilidades de comunicação podem amenizar as dificuldades de socialização.”

Estudantes autistas já somam mais de 600 mil nas escolas brasileiras — e 95% estão em salas regulares.
Estudantes autistas já somam mais de 600 mil nas escolas brasileiras — e 95% estão em salas regulares. – iStock/vejaa

Uma escola realmente inclusiva

Mas como garantir um ambiente escolar verdadeiramente inclusivo? Para Eliane, tudo começa na intenção: “A escola precisa querer ser inclusiva. A inclusão começa na matrícula e deve estar presente do portão à sala da direção. Todos os espaços da escola têm que ‘conversar’ inclusão.”

Ela enfatiza que nem todas as instituições estão estruturadas para lidar com as particularidades do autismo, mas que é dever da escola se adaptar. “Aceitar desafios significa entender que o comportamento do aluno autista muitas vezes é uma reação ao que ele não está entendendo ou não consegue expressar. Não pode ser encarado como algo pessoal.”

João Lucas concorda e vai além: “A única forma efetiva de a escola se preparar é por meio do conhecimento, da capacitação contínua, da atualização profissional e de um planejamento institucional sólido. Toda a estrutura organizacional da escola precisa ter clareza dos objetivos de inclusão.”

O poder da comunicação

Nenhuma dessas ações funciona isoladamente. Por isso, os dois especialistas ressaltam o papel essencial da comunicação entre professores, famílias e profissionais da saúde.

Para João Lucas, essa tríade — escola, clínica e família — é o alicerce do desenvolvimento da criança. “As três partes precisam cumprir sua parte individualmente e trabalhar coletivamente para um único objetivo.”

Eliane reforça: “O aluno é um só. O alinhamento das intervenções, seja na escola, na clínica ou em casa, vai ajudar essa criança, jovem ou até mesmo adulto a ter sucesso no processo de aprendizagem.”

O crescimento da presença autista nas escolas

O número de estudantes autistas matriculados em classes comuns nas escolas brasileiras tem aumentado significativamente nos últimos anos. De acordo com o Censo Escolar de 2023, havia 636.202 estudantes com autismo matriculados no país, sendo que 95,4% deles estavam em classes comuns. Isso representa um crescimento de 50% entre 2022 e 2023 — um salto expressivo considerando que, em 2017, o número de alunos autistas não passava de 100 mil.

Esse avanço, embora animador, impõe desafios concretos para as redes de ensino. Em resposta, o Ministério da Educação (MEC) tem atuado de forma colaborativa com estados, municípios e o Distrito Federal para garantir o direito à educação especial inclusiva em todos os níveis e modalidades. O objetivo é assegurar acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da formação de professores e da oferta de recursos de acessibilidade.

A atuação do MEC também envolve a construção de políticas públicas. Um exemplo recente foi o Seminário Internacional Autismo e Educação Inclusiva, realizado em 2024, onde foram compartilhadas práticas pedagógicas e experiências bem-sucedidas com estudantes autistas. Na ocasião, o Parecer CNE/CP nº 50/2023 foi homologado, com orientações específicas para o atendimento educacional de alunos com TEA, alinhadas à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI).

De acordo com a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/2012), o estudante com TEA é considerado pessoa com deficiência para todos os efeitos legais e, portanto, faz parte do público-alvo da educação especial.

Outro dado que chama atenção é o crescimento do número de pessoas com autismo no ensino superior. Em 2023, cerca de 6 mil autistas estavam matriculados em universidades no Brasil — um aumento de mais de 500% em relação aos 980 registrados em 2017, segundo o Inep.

Adaptação, diálogo e formação docente são pilares para transformar a inclusão em realidade.
Adaptação, diálogo e formação docente são pilares para transformar a inclusão em realidade. – iStock/vejaa

Mitos que ainda precisam cair

Apesar dos avanços, alguns mitos sobre autismo e inclusão escolar ainda precisam ser combatidos. Eliane lista alguns dos mais recorrentes: a ideia de que autistas não gostam de abraço, de brincar, ou que não têm sentimentos.

“Não é uma questão de querer, é uma questão de não conseguir. A sensibilidade sensorial e a dificuldade de interação social dificultam essas experiências.”

Outro mito comum é o de que, após certa idade, o autista não aprende mais. “Todo autista, independente da idade ou nível de suporte, tem condições de aprendizado. Precisamos que a escola ‘sonhe’ os nossos filhos”, diz.

João Lucas destaca um equívoco frequente entre educadores: acreditar que apenas boa vontade basta.

“O maior mito da inclusão escolar é que ela pode ser concretizada apenas com amor e boa vontade. Na verdade, é preciso usar práticas baseadas em evidências científicas e ter um conhecimento profundo do autismo.”

Um recado aos professores

Para fechar, os dois entrevistados deixam mensagens potentes para professores que ainda têm dúvidas sobre como atuar de forma mais inclusiva.

“Eu sei que ser professor não é fácil. São inúmeros desafios diários”, diz João Lucas. “Trabalhar com autistas também não é simples, pois cada um é único. Mas acreditem: a inclusão é possível. Quando se junta a vontade de incluir com a capacidade do conhecimento, as barreiras são derrubadas.”

Eliane, com a experiência de quem é mãe e educadora, arremata: “Nossa profissão faz a diferença na vida de quem passa pela nossa sala de aula. Mais do que nunca precisamos nos capacitar. Sem conhecimento, é impossível entender e atender alunos dentro do espectro autista.



Continue Reading
Advertisement
Clique para comentar

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Revista Plateia © 2024 Todos os direitos reservados. Expediente: Nardel Azuoz - Jornalista e Editor Chefe . E-mail: redacao@redebcn.com.br - Tel. 11 2825-4686 WHATSAPP Política de Privacidade