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‘Sirāt’ é travessia sádica rumo ao inferno feita para público masoquista

Há diretores que transformam o sofrimento em uma experiência sensorial provocante; outros, em mero castigo. Oliver Laxe (O Que Arde), com Sirāt, parece pertencer ao segundo grupo. O filme — escolhido pela Espanha para disputar uma vaga no Oscar 2026 e exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo — segue um pai e um filho (vividos por Sergi López e Bruno Núñez, respectivamente) em uma travessia pelo deserto marroquino à procura da filha e irmã desaparecida. Acompanhados pela cachorrinha Pipa e por um grupo de frequentadores de raves, eles se lançam em uma espiral rumo ao inferno, num cinema que aspira a ser transcendental, mas encontra apenas o sadismo na estrada.
Laxe opta pelo estridente: cada plano e efeito sonoro são tentativas de castigar o espectador. Há quem veja nisso uma tentativa de se alinhar a uma linhagem ilustre do desconforto cinematográfico, de Michael Haneke (A Professora de Piano) a Michel Franco (Depois de Lúcia), passando ainda por Gaspar Noé (Irreversível) e Yorgos Lanthimos (Dente Canino), mas enquanto esses diretores constroem suas violências dentro de uma estrutura dramatúrgica coerente, Laxe parece apenas colecionar choques. O resultado é uma obra que confunde brutalidade com profundidade. Tudo soa calculado para perturbar — a mise-en-scène árida, o som ensurdecedor, a brutalidade gratuita —, mas o incômodo nunca se traduz em reflexão. O deserto de Sirāt é literal e simbólico: uma paisagem vazia onde nada floresce, nem mesmo uma ideia.
Do ponto de vista formal, o filme até começa promissor. O prólogo, em que a câmera se move lentamente entre dunas e raves, sugere o Laxe contemplativo de outrora — aquele interessado em captar o atrito entre o mundo material e a transcendência, aqui marcada pelas raves. Mas essa camada sensorial logo é engolida por uma dramaturgia artificial, que força o espectador a suportar o sofrimento dos personagens sem oferecer densidade a eles. Cada evento sádico que se segue — uma ameaça, uma morte, um cachorro em perigo — funciona apenas como repetição da provação anterior, sem variação de intensidade ou sentido. É como se o diretor acreditasse que aumentar o volume do desespero bastasse para dar peso à narrativa.
A comparação com O Comboio do Medo (1977) ou Mad Max: Estrada da Fúria (2014) é inevitável, mas trai o verdadeiro problema do filme: Laxe não está interessado na travessia em si, mas no desconforto como fim em si mesmo. A jornada física e emocional de pai e filho se dissolve em um desfile de provações arbitrárias, de uma crueldade que se torna vazia pela insistência. No meio disso, surge um pano de fundo distópico — militares e rumores de uma “Terceira Guerra Mundial” — que parece colado à trama apenas para justificar o caos e a contemporaneidade da história. Nada disso, porém, é explorado de forma convincente. O suposto colapso do mundo exterior nunca dialoga com o drama íntimo dos personagens; é apenas ruído, uma moldura preguiçosa para o inferno particular que o filme quer exibir.
Essa desconexão se torna mais gritante na segunda metade, quando Laxe abandona o minimalismo atmosférico inicial e cede à destruição total — dos corpos, da lógica, do próprio interesse. Os personagens deixam de existir como pessoas e se tornam instrumentos de tortura emocional. Há quem leia nisso uma alegoria sobre a humanidade contemporânea, sobre o niilismo e a barbárie, mas o filme não tem a densidade filosófica para sustentar tal ambição. Seu existencialismo soa de bar de beira de estrada: “as coisas acontecem assim porque o mundo caminha para isso”, parece dizer o roteiro, enquanto o espectador é submetido a mais uma tortura.
No fim, Sirāt é uma travessia rumo ao nada — um exercício de estilo que, ao tentar representar a dor, acaba apenas oferecendo sadismo. O deserto, que parece ser uma espécie de metáfora de purgação ou renascimento, torna-se espelho do próprio filme a partir das escolhas do diretor: vazio. Laxe filma o sofrimento com devoção, mas sem propósito. Ao espectador resta decidir se abandona a viagem — e há quem realmente o faça — ou se se deixa açoitar por essa provação emocional e masoquista.
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