Música
Planet Hemp transforma show de despedida em SP numa festa sem precedentes

Estava até um pouquinho esquisito. O Planet Hemp, dono de uma das abordagens mais combativas da música brasileira, fazia agradecimentos a torto e a direito no show de sábado, 15. Era, obviamente, compreensível: a banda está prestes a finalizar sua turnê de despedida, “A Última Ponta”, e o Allianz Parque, em São Paulo, era o penúltimo destino — Fundição Progresso, no Rio de Janeiro, recebe a performance final, em 13 de dezembro.
Marcelo D2, em especial, era quem distribuía os “obrigados”. Agradeceu a cada pessoa na plateia, a cada integrante da banda, a cada um dos vários convidados e a diversas pessoas retratadas no telão do show, que passou a limpo a trajetória do importante grupo carioca fundado em 1993. Um pedaço dessa história esteve no palco por meio das participações especiais: além dos previamente anunciados Pitty, Emicida e o membro honorário Seu Jorge, surgiram nomes como o influente João Gordo e ex-integrantes como Black Alien e o DJ Zé Gonzales. Linda festa.

Gratiluz à parte, o Planet Hemp seguiu ardido. O espetáculo preparado para a turnê de despedida potencializou a mensagem forte e altamente politizada apresentada por D2, BNegão, o baixista Formigão, o guitarrista Nobru, o baterista Pedro Garcia e o guitarrista/tecladista Daniel Ganjaman, naquela noite acompanhados também de DJ, percussionista e trio de metais. Os telões possantes ajudavam a narrar episódios importantes da história do grupo ou ofereciam complemento aos temas abordados nas letras, da legalização da maconha ao descontentamento com todo tipo de autoridade vigente no Brasil.

BaianaSystem
A abertura da ocasião ficou a cargo do BaianaSystem, encaixado perfeitamente na programação de modo que um VT exibido pela própria banda garantia: eles não existiriam sem o Planet Hemp. E algo incomum envolvendo os anfitriões aconteceu logo no início do set. D2 surgiu dos bastidores e foi ele mesmo apresentar o grupo ao público. Além disso, a primeira música — uma mescla de “Reza forte” com “Calundu” e “A vida é curta pra viver depois” — ainda teve participação de BNegão, bem como um empolgado Marcelo pulando pelo palco.
Se o som do Baiana é difícil de definir — engloba samba, rock, reggae, hip hop, gêneros latino-americanos e ritmos oriundos da África —, por outro lado, é bem fácil de se curtir. Assistir à performance do grupo, liderado no palco pelo vocalista Russo Passapusso, representa a garantia de ser tomado por uma avalanche sonora da qual é impossível passar incólume. Destacaram-se a trinca de abertura anteriormente citada, o desfile de bom gosto musical contido em “Sulamericano” — com direito a “Bésame Mucho”, de Consuelo Velázquez —, o hit “Lucro (Descomprimido)” e a explosiva participação de Vandal em “Ballah ih Fogoh”.
Planet Hemp
Não foi exatamente às 20h30 que o Planet Hemp subiu ao palco do Allianz Parque. Todavia, por volta desse horário, já se ouvia a voz de Marcelo D2 vindo das coxias, interagindo com o público e comentando sobre algumas das músicas tocadas na playlist pré-show — a exemplo de quando rolou Ratos de Porão, quase antecipando o que iríamos conferir no bis.

Os perdoáveis 10 minutos de atraso talvez tenham ajudado na reação catártica obtida com a primeira das 37 (!) músicas tocadas naquela noite: “Dig Dig Dig (Hempa)”. O começo do set foi marcado pelo peso, com o nível de adrenalina apenas subindo com a sequência “Fazendo a cabeça” (iniciada com trecho de “Ex-quadrilha da fumaça”), “Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga” (trazendo um “f*da-se” imenso no telão ao fim), “Distopia” (quando os sinalizadores começaram a dar as caras na plateia), “Taca Fogo”, “Mary Jane”, “Phunky Buddha”, “Planet Hemp”, “Legalize Já” (a primeira a colocar iluminação verde no estádio) e “Não compre, plante”. Sim, banda e público tiveram fôlego para esses quase dez números de uma vez só, tendo apenas um intervalo mais longo antes de “Mary Jane”.
“Jardineiro” e “Onda Forte” (com sample de MC Carol), a essa altura terceira e quarta faixas tocada do álbum Jardineiros (2022) — que só agora sabemos ser o disco de estúdio final do Planet —, ofereceram um pouco de contemplação e psicodelia. No meio delas esteve a clássica “Queimando tudo”, curiosamente repetida mais adiante do set. E a partir daqui, as participações especiais se tornariam comuns: Emicida e Seu Jorge surgiram para a intensa “Nunca tenha medo” (precedida por um válido discurso de BNegão sobre o uso político do medo como estratégia para manutenção do poder) e “AmarElo”, celebrada canção do rapper de nome real Leandro Roque de Oliveira com sample de “Sujeito de Sorte” (Belchior). O elegante artista batizado Jorge Mário da Silva ainda permaneceria para um belo solo de flauta em “Biruta” e a interativa dobradinha “Cadê o isqueiro?” + “Quem tem seda?”.

No que dá para chamar de terceira etapa do repertório, o Planet Hemp olha ainda mais para seu passado, e não apenas pela presença destacada de Zé Gonzales. Um trecho de uma curiosa reportagem da TV Globo que mostra os integrantes bolando um baseado diante das câmeras antecedeu a funky “Puxa Fumo”, enquanto a skate-punk “Salve, Kalunga” homenageou Fábio Kalunga, artista falecido em 2017 que fez história no underground carioca com a banda Cabeça e integrou o Seletores de Frequência com BNegão. Já uma montagem em vídeo citou a patética prisão do grupo em novembro de 1997 como forma de preceder “O bicho tá pegando”, hip hop classudo que referencia “Malandragem dá um tempo” (Bezerra da Silva).

Única convidada a não cantar uma música do Planet, Pitty trouxe “Admirável Chip Novo” — regravada pela banda anfitriã no álbum-tributo Reativado — e “Teto de Vidro” antes de um pedaço do set que foi da roda imensa provocada por “100% Hardcore” ao groove de “Zerovinteum”. Preparação para um final de show emocionante, a começar pela versão de “Samba Makossa” (Chico Science & Nação Zumbi) que, para além dos nomes previstos, mencionou Skunk, Kalunga, Chorão, Sabotage e mais.

A partir de “Contexto”, uma presença de última hora que pareceu ter surpreendido até os integrantes: o eterno integrante Black Alien, possivelmente o mais aplaudido entre todos na noite. Não tinha como Gustavo de Almeira Ribeiro ficar de fora — e, ainda bem, ele não saiu mais do palco. “Queimando tudo” foi até tocada de novo para, agora sim, contar com seu rap como na original.

O bis, junto das previstas “Deisdazseis” e “Mantenha o Respeito”, contou com “Crise Geral”, clássico do Ratos de Porão com a participação de ninguém menos que João Gordo. Definido como uma influência e como “o cara que botou coragem nessa rapaziada aqui”, o vocalista e ícone punk não tirava o sorriso do rosto por estar ali. Àquela altura, nem a plateia parava de sorrir. E ia muito além do efeito da fumaça que subiu a noite toda.
Para além da mensagem amplamente discutida — e nem sempre absorvida — das letras, algo precisa ser dito sobre o Planet Hemp: musicalmente, é uma banda e tanto. Raríssimos nomes a nível global conseguiram explorar tantos gêneros com tamanha maestria. Fora o “rap, rock and roll, psicodelia, hardcore e ragga”, há pitadas de samba, funk americano e até hard rock, vide “Adoled”. Conforme a curta discografia avança, fica ainda mais sofisticado. O instrumental capitaneado no sábado, 15, por Nobru, Formigão, Pedro Garcia e Ganjaman não deixa a peteca cair e merece reconhecimento.

Mas o grande legado é conceitual: as ideias presentes nas letras vociferadas por Marcelo D2, BNegão, Black Alien e Skunk — que, reforçando o óbvio, vão muito além de um mero debate a respeito de legalização da maconha — transcendem a própria existência do grupo enquanto atração que grava e se apresenta ao vivo. Não é apenas por ter lotado um estádio que o Planet Hemp entrou para a história. É por tudo que fez ao longo dos últimos 32 anos. O espetáculo de sábado, 15, e a comoção gerada em torno da turnê de despedida são apenas validações adicionais da contribuição que esta banda trouxe para a música e para a sociedade como um todo. Agradecemos por isso.

Setlist — Planet Hemp:
1. Dig Dig Dig (Hempa)
2. Ex-quadrilha da fumaça / Fazendo a cabeça
3. Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga
4. Distopia
5. Taca fogo (com a esposa do Marcelo, Luiza, nos backing vocals)
6. Mary Jane / Phunky Buddha
7. Planet Hemp
8. Legalize já
9. Não compre, plante!
10. Jardineiro
11. Queimando tudo
12. Onda forte
13. Nunca tenha medo (com Emicida e Seu Jorge)
14. AmarElo (música de Emicida; com Emicida e Seu Jorge)
15. Biruta (com Seu Jorge na flauta)
16. Cadê o isqueiro? / Quem tem seda? / Pilotando o bonde da excursão (com Seu Jorge)
17. Puxa fumo
18. Adoled (The Ocean)
19. Salve, Kalunga
20. Gorilla Grip
21. O bicho tá pegando
22. Mão na cabeça
23. Não vamos desistir
24. Stab
25. Procedência C.D.
26. Admirável chip novo (música da Pitty; com participação da Pitty)
27. Teto de vidro (música da Pitty; com participação da Pitty)
28. 100% Hardcore / Deixa a gira girá
29. Zerovinteum
30. Hip Hop Rio
31. Samba makossa / Monólogo ao pé do ouvido (cover de Nação Zumbi)
32. A culpa é de quem?
33. Contexto (com Black Alien)
34. Queimando tudo (com Black Alien)
Bis:
35. Deisdazseis (com Black Alien)
36. Crise geral (música do Ratos de Porão; com João Gordo)
37. Mantenha o respeito (com Black Alien e João Gordo)
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