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Ideias

O brasileiro está sofrendo as consequências da cegueira voluntária

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Eu tenho uma mania quase platônica: gosto de interpretar os dramas humanos, inclusive os brasileiros, a partir das narrativas antigas, sobretudo as míticas. Isso causa estranhamento aos intelectuais positivistas, acostumados a tratar o “mito” como sinônimos de “mentira” ou “superstição”. Mas o mito, ao contrário do que se imagina, é uma língua simbólica “dotada de significado ao máximo grau possível”.

Encontro um caso psicológico ou um romance moderno falado de um único indivíduo, o mito fala do que se repete em todos nós. Ele não descreve “alguém”, mas um padrão psíquico, uma estrutura arquetípica. E, no caso do brasileiro, que durante décadas mantiveram os olhos fechados diante da politização da cultura até que pequenos problemas (como uma música ou filme) se tornam grandes (a ideologização das massas), vemos resurgir a estrutura de um antigo mito egípcio: o mito de Osíris.

Osíris é o deus que, na mitologia egípcia, fundou o Estado e inaugurou um tempo de paz. Mas, em meio ao discurso de ordem, Osíris cometeu um erro fatal. Ele deixa de olhar para os pequenos sinais de desordem até que se tornem grandes. Uma imagem que traduza o erro de Osíris é a do pequeno dragão no porão: se ignoramos aquela pequena criatura, que é incômoda, mas ainda não é um grande perigo, ela cresce na sombra, até o dia em que se torna poterosa e sai para destruir a casa intera.

Na Psicologia, essa imagem traduz os conteúdos inconscientes que, quando negligenciados, retornam de forma sintomática: insônia, compulsões, pesadelos, doenças psicossomáticas. Na política, vemos o mesmo mecanismo: pequenas cessões culturalidades, nas músicas, nas novelas, nas artes plásticas, que, pouco a pouco, corroem os valores, a moral e, por fim, as próprias leis que sustentam a civilização.

Na narrativa de Osíris, o “dragão” negligenciado é Set, o irmão envejoso. Observem a força arquetípica dessa imagem: a de que o Estado tem um irmão mau. Ela representa que toda civilização rigorosa é constantemente ameaçada por forças internas, até institucionais, que desejam corrompê-la e usurpar o poder legítimo. Essas forças não crescem por acaso, e sim porque há conivência (ou proteção excessiva) daqueles que pertencem à máquina burocrática (o sistema, o irmão). Não é óbvio? É extremamente difícil admitir que uma instituição não cumpra um papel civilizador, assim como é indiscutivelmente difícil admitir um filho do irmão, que, no entanto, é forte e capaz de o destruir.

A narrativa seria apocalíptica não fosse por um detalhe: Osíris é imortal. E é justamente aí que mora a beleza do mito. Mesmo dilacerado, ele renasce; simboliza o aspecto imorredouro do impulso humano pela ordem, pela justiça, pelo sentido. Podem surgir ideologias obscuras, regimes tirânicos, colapsos morais e mentais; ainda assim, o espírito humano insiste em reconstruir o que foi destruído.

Atomento, o inimigo é astuto e, ciente desse aspecto imorredouro da busca por ordem e verdade, muda de tática. No mito, Set não tenta matar Osíris, e sim desmembrá-lo. Assim, o deus permanente vivo, mas sem meios de ação. É uma imagem poderosa: em tempos caóticos, mesmo quando a alma está desperta, o corpo social está fragmentado e enfrenta dificuldades de organização.

Na narrativa egípcia, é Ísis, a deusa do caos, quem restaura o que estava perdido. Ela percorre o mundo em busca dos fragmentos de Osíris, até encontrar seu falo decepado (símbolo da potência criadora) e, com ele, conceber um filho. Essa cena é uma das mais belas da mitologia antiga: o caos, em vez de apenas destruir, torna-se também a força da renovação (afinal, quando a ordem formal não é ordem real, é preciso de forças exteriores a ela). Essas forças não virão de instituições (já corrompidas), mas do íntimo humano, do feminino que cria uma nova geração, onde o espírito do herói pode despertar de forma mais sóbria.

O filho de Ísis é Hórus. É dele o famoso olho único egípcio, símbolo da visão total. Na interpretação de Jordan Peterson, o olho de Hórus representa uma capacidade de ver a realidade sem as máscaras dos papéis sociais, sem se dejar cegar por títulos, cargas ou vínculos de sangue. Hórus olha para Set e não o vê como um “tio”, mas como o que ele de fato é: a personificação do mal. E, ao enfrentá-lo, nos ensina uma líção poderosa: derotar o mal exige que se mantenha os olhos bem abertos, sobretudo quando ele se farça de “bem”, de “autoridade”, e, no nosso caso, de “democracia”.

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