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Ideias

Leia com exclusividade um trecho do novo livro de Guilherme Fiuza

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O que acontece com uma civilização quando sua principal fonte de informação escolhe a mentira? Esta é a pergunta inquietante que marca o novo livro de Guilherme Fiuza, “O Grande Circo” (selo Avis Rara).

Nesta obra “recheada de fatos reais”, o jornalista, escritor e colunista da Gazeta do Povo volta sua verve crítica para o universo que melhor conhece: o da imprensa. O foco é a crise do noticiário atual, em que as manchetes se repetem como números ensaiados de um show e a manipulação se disfarça de jornalismo.

Entre a ironia e a indignação, Fiuza conduz o leitor por bastidores em que a inversão de fatos, a fabricação de consensos e a acusação de “desinformação” funcionam como truques de mágica que moldam percepções. Leia um trecho exclusivo a seguir.

Para que possamos mentir com classe, nós precisamos de culpados de plantão. Não é inventar um culpado do dia para a noite, que fique bem entendido. Nós preparamos, moldamos, alimentamos, esculpimos, enfim, nós desenvolvemos os nossos culpados com perícia e muito capricho. Você já foi um deles.

Sim, você! Lembra quando dissemos que circulando sozinho ao ar livre você era uma ameaça à vida alheia e enfiado num ônibus lotado você era o rei da empatia? Bons tempos, aqueles.

Nunca foi tão fácil fazer jornalismo. Era só dar uma volta pela cidade no carro de reportagem com três máscaras na cara e sair dedurando os hereges. Foi a maior fábrica de culpados e vilões que já construímos! Inocentes éramos só nós, o Dória, o Eduardo Leite, o Gavin Newsom, o Boris Johnson, o Fauci e mais meia dúzia de heróis.

Quando os tempos apertam é diferente. Aí os culpados de estimação têm que ser MUITO culpados — justamente pela escassez. O Trump com certeza foi o maior vilão que já construímos, e temos um orgulho transbordante disso. Sem perder a humildade, claro.

Mas é que o Donald é uma espécie de vilão multiuso: pode ser culpado por praticamente qualquer coisa sobre a Terra — enquanto houver Terra. Ou melhor: enquanto ELE não acabar com a Terra.

Está chateado que hoje ninguém prestou atenção em você? Deprimido porque desde que acordou não ouviu ainda nenhum aplauso para o seu humanismo de fachada? Sem problemas!

Vá ao teclado, conte que seu gato subiu no telhado com medo do Trump e agora ninguém consegue tirá-lo de lá. Pronto. Adeus, solidão! Você receberá instantaneamente toda a solidariedade e o amor que a vida jamais te daria por quem você é.

Mas não se esqueça de agradecer a nós, hein? Não fique pensando que um monstro perfeito assim cai do céu. Isso deu trabalho, garoto.

Um vilão absoluto

Dito isso, adivinha quem nós culpamos pelo atentado contra o Trump? Acertou, danado: o próprio Trump! Entendeu como é valioso um vilão absoluto?

Não está acreditando que nós fomos capazes disso? Duvida que tenhamos tido a coragem de culpar a vítima do atentado pelo atentado contra ela? Você está subestimando a nossa desinibição. Sabe de nada, inocente!

Felizmente podemos provar — se não ia ficar parecendo história de pescador. Veja com seus próprios olhos: “O presidente Trump e seus apoiadores contribuíram para essa retórica violenta”, declarou a emissora americana ABC menos de 24 horas depois dos tiros na Pensilvânia. Exatamente isso!

Não havia ainda investigação alguma concluída sobre o crime, a chefe do Serviço Secreto nem tinha pedido demissão ainda, e a imprensa já tinha resolvido o caso: culpa do Trump!

Não é apaixonante, o nosso ofício? E o mais apaixonante é que nós agimos em bloco — depois que perdemos a vergonha de ser ostensivos. Da ABC para O Estado de S. Paulo, por exemplo, só muda o hemisfério. “Opinião do Estadão: Atentado contra Trump representa uma dramática escalada da violência política que tem marcado os EUA desde que o ex-presidente incitou a invasão do Capitólio no 6 de Janeiro.”

Num texto como esse, quando tivermos um pouco mais de cara de pau, haveremos de concluir, triunfantes: bem feito!

De qualquer forma, nossa desenvoltura já atingiu um nível de excelência. Dizer que Trump incitou a invasão do Capitólio é uma questão de estado de espírito, quase um capricho de alma.

Nos tempos idos daquilo que se chamava de jornalismo não dava para fazer isso, porque Trump não perdeu seus direitos políticos — e inclusive no momento do atentado ele liderava a corrida presidencial em várias pesquisas.

Acusá-lo, portanto, de mentor da invasão ao parlamento — apresentando isso como fato estabelecido — seria uma completa leviandade. “Levi” o quê? Nem sabemos o que é isso hoje em dia.

Relativizar tudo

Vamos acompanhar um pouco mais a estrada sinuosa do pensamento do Estadão. O título do editorial, publicado em cima do lance, era “Entropia americana” (nós, da imprensa moderna, somos muito cultos e não queremos que pairem dúvidas sobre isso).

Segue um trecho da entropia editorial: “O crime de que Trump foi vítima há de ser vigorosamente condenado. Contudo (…).” Vamos prosseguir, mas colocamos essas reticências para uma breve e valiosa reflexão: o que seria de nós sem os contudos? Sem os poréns, os todavias? Roubar é crime. Contudo…

A possibilidade de relativizar tudo é a prova cabal de que a vida é bela. Retomando: “O crime de que Trump foi vítima há de ser vigorosamente condenado. Contudo, não se pode dizer que era imprevisível em um contexto no qual o recurso à força das armas tem sido estimulado pelo próprio ex-presidente como meio de afirmação política desde o fatídico dia 6 de janeiro de 2021”.

Entendeu? Trump foi fuzilado por causa do seu “recurso à força das armas”. Em uma única frase estão explicados todos os atentados a presidentes americanos através da história! Tanto trabalho tentando decifrar o assassinato de John Kennedy e aí está, singela, definitiva, seis décadas depois, a resposta: foi a onda de ódio! Como é pródigo e certeiro, o jornalismo moderno!

Claro que admitir Trump como “vítima” de qualquer coisa já deve ter sido um parto para o editorialista entrópico. Mas o troco vem na mesma frase, antes mesmo do “contudo”.

É emocionante o reconhecimento de que “o crime” deve ser “vigorosamente condenado”. Já que a culpa é da vítima, resta condenar o crime. Nessas horas, a reportagem dos grandes veículos de comunicação vai a campo de forma exuberante.

Veja a joia que a Folha de S.Paulo extraiu dessa batalha, apenas dois dias após o contratempo da Pensilvânia. “Leitor comenta atentado a Trump: ‘Consequência de todo ambiente criado por ele mesmo’.” É ou não é um show de jornalismo? Superando o já sofisticado “diz especialista” para calçar o que a gente quer porque quer dizer, surge o “leitor comenta”.

Desculpem, analistas,cientistas, técnicos e professores. Quem são vocês diante da autoridade dele, o leitor, num momento grave da conjuntura mundial? E para que gastar entropia linguística em editoriais empolados se o Zé da Galera tem a resposta na ponta da língua? Foi o “ambiente”, estúpido!

Arte da dissimulação

Vamos fazer a reconstituição do crime: Trump criou um ambiente. Ninguém cria um ambiente impunemente. Você aí, com este livro na mão: já criou um ambiente? Então és um sobrevivente. Assim como Trump. Sorte sua se não apareceu um atirador em cima do telhado apontando um fuzil AR-15 para a sua cabeça. É isso que acontece com quem cria ambientes.

O que Trump queria? Ser alvejado com rosas? Está certíssimo o leitor da Folha. E o leitor de O Globo também. Como já explicado, nós, os heróis do jornalismo moderno, usamos todo o nosso aparato intelectual para desacreditar o atentado contra Donald Trump. Fomos ostensivos, mas também sabemos ser sutis.

Colocar o leitor para falar em lugar dos jornalistas já é um clássico na arte da dissimulação, mas utilizá-lo na própria seção de cartas também é uma boa sacada. Intitulada “A bala e a truta,” essa carta é tão boa que poderia ter sido escrita por qualquer um de nós:

“Tenho uma dúvida: tendo uma orelha uma espessura de alguns milímetros, como uma bala de fuzil vinda de cima não feriu ou matou uma das pessoas que estavam aglutinadas atrás do Trump? A bala ficou presa na orelha? Algumas pessoas que entendem de armas acham que uma bala de fuzil arrancaria a orelha dele. E cadê a bala? Tem truta nessa história!”

É a perfeição. O mesmo jornal que noticiou o atentado com a manchete “Trump cai do palco”, desova uma perícia de botequim na seção de cartas — com direito à tese debochada de que a bala teria ficado “presa na orelha”.

Quando O Globo publicou essa pérola do espírito de porco, já havia uma pessoa inocente morta pela bala que não ficou presa na orelha de Trump. E daí? O importante (e urgente) era publicar essa gracinha macabra. Nós nunca nos afastamos da nossa missão.

Confirmado o atentado contra Donald Trump — com bala e sem truta — a Globonews emitiu o alerta: Joe Biden precisa agir rápido. Naturalmente, era sobre esclarecer o quanto antes um crime daquela magnitude cometido nas barbas do Serviço Secreto, certo? A preocupação da imprensa era com a segurança das instituições democráticas colocadas em risco pelo atentado, certo? Errado.

Os vivos e sua mania de falar

Vamos ao trecho completo da análise veiculada pela emissora pouco depois dos tiros na Pensilvânia:

“Joe Biden precisa realmente agir rápido, porque não há dúvidas de que isso vai ser usado política e estrategicamente por Donald Trump, que vem, há bastante tempo, fazendo um discurso de que é a vítima, de que precisa combater esse sistema e de que existe uma grande perseguição política contra ele”, disse Uriã Fancelli, especialista em relações internacionais pelas Universidades de Groningen e Estrasburgo, na Globonews.

Certíssimo, o especialista. Já que Trump não morreu, o mais urgente era calar a sua boca. Os vivos têm mesmo essa mania de falar, e isso pode ser muito perigoso.

É impressionante a empatia do intelectual de Estrasburro. Nosso trabalho impecável de ocultação de cadáver vivo foi um pouco prejudicado por um elemento indesejável no mundo maravilhoso da mídia. Um intruso. O bilionário mimado Elon Musk fez de tudo para prejudicar a missão sagrada do jornalismo mentira. Quem esse sujeito pensa que é?

Estava indo tudo bem na nossa tentativa de abafar o caso quando esse cara começou a tentar atrapalhar. Usando a plataforma X — que ele comprou para transformar no seu brinquedinho pessoal, temos certeza —, Musk começou a expor nossas manchetes iguaizinhas.

Qual é o problema de veículos concorrentes da grande imprensa passarem a atuar como uma orquestra? O que ele tem contra uma sinfonia bem ensaiada? Aí o brinquedo do bilionário mimado saiu expondo o nosso vexame — sendo que não autorizamos ninguém a mostrar os nossos tradicionalíssimos veículos passando vergonha. Mas estava lá, no Twitter que virou X, o coral afinado sobre o 13 de julho em Butler:

“Donald Trump escoltado para fora do palco pelo Serviço Secreto em comício após barulhos altos ouvidos na multidão” (ABC News).

“Trump escoltado para fora após barulhos altos no comício da Pensilvânia” (The Washington Post).

“Serviço Secreto retira Trump do palco após estampidos ouvidos no seu comício na Pensilvânia” (NBC News).

“Trump removido do palco pelo Serviço Secreto após barulhos altos surpreenderem ex-presidente” (USA Today).

“Serviço Secreto retira Trump do palco após queda dele em comício” (CNN).

O coral da imprensa

Após essa rajada de manchetes certeiras, o público estava muito bem-informado sobre os fatos capitais:

1. Trump caiu.

2. Trump saiu do palco.

3. Foram ouvidos barulhos altos na Pensilvânia.

Nem os “supostos sons de tiros” que dominaram o coral da imprensa brasileira foram vistos nas manchetes estadunidenses. O jornalismo nacional ainda tem muito que aprender com os imperialistas. Aí vem esse riquinho viciado em foguetes que andam de costas criticar o nosso trabalho. O que nós fazemos? O que todo jornalista moderno deve fazer: a caveira dele.

De que forma? Assim: “Musk e outros bilionários pró-Trump ajudaram a formatar a narrativa do tiroteio”, estampou o Washington Post no dia seguinte ao atentado. Veja que de formatação o jornal entende: “A comunidade empresarial direitista no X, incluindo Elon Musk e o bilionário do hedge fund Bill Ackman, usou seus megafones para endossar Trump e propagar versões sobre o ataque de sábado”.

Até aceitaríamos que Musk tivesse falsificado os acontecimentos na Pensilvânia. Mas expor a nossa falsificação não podemos tolerar. Aí temos que aplicar o nosso código de ética, como exposto acima: bateu, levou; olho por olho, dente por dente; aqui se faz, aqui se paga. Afinal, alguém tem que defender a civilização.

A reação de Elon Musk às acusações de manipulação foi também publicada no X. Ele ilustrou a cobertura dada pela grande mídia para a tentativa de assassinato de Donald Trump com uma gravura do assassinato de Júlio César por um grupo de senadores em Roma. Legenda: “César ferido em abraço grupal”.

Não precisava ter viajado tão longe no tempo. O assassinato de John Kennedy em 1963 estava mais à mão. Pelas lentes do jornalismo moderno, a legenda correta seria: “Kennedy passa mal durante passeio em Dallas”. O mundo não seria muito melhor assim? Chega de ódio.

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