Música
Em Deadbeat, Tame Impala troca as grandes reflexões pela poesia do dia a dia

Acordar. Café frio. Trânsito. Telas. Prazos. Voltar para casa. Séries. Dormir. Repetir. A vida moderna se resume a ciclos tão previsíveis que poucas pessoas enxergam além da monotonia. A maioria vê o dia a dia como uma música lenta, repetitiva e cansativa. Mas e se jogássemos ela num drum machine, adicionássemos camadas de sintetizadores psicodélicos e transformássemos o tédio em algo que te faz querer dançar até esquecer que você tem que acordar cedo amanhã?
É isso que Kevin Parker, também conhecido como Tame Impala, fez no seu novo álbum Deadbeat (2025), o quinto de estúdio, lançado na madrugada desta sexta, 17. Um dos produtores mais influentes da música pop desde os anos 2010 parou de filosofar sobre correntes cósmicas e a relatividade do tempo para focar na simplicidade do cotidiano.
São 12 faixas de club-psych que funcionam tanto como trilha sonora para raves no interior australiano quanto como terapia introspectiva em formato de batida.
Para quem não conhece, Kevin Parker emergiu como uma das vozes mais influentes da última década. Desde InnerSpeaker (2010) e Lonerism (2012), o multi-instrumentalista australiano vem criando paisagens sonoras que desafiam gêneros, tocando todos os instrumentos e atuando como escritor, produtor, mixador e engenheiro do Tame Impala. Mas foi com Currents (2015) que Parker alcançou outro patamar — um álbum que representou uma mudança de “correntes”, tanto no sentido de fluxos aquáticos e cósmicos quanto de eletricidade, marcando o começo da sua transição do rock psicodélico para territórios mais eletrônicos e pop.
The Slow Rush (2020), seu trabalho mais recente até então, mergulhou fundo em reflexões sobre o tempo — sua passagem inexorável, como ele nos molda e nos escapa. Durante esse período, Parker também se consolidou como um dos produtores mais requisitados do mundo, colaborando com Dua Lipa, The Weeknd, SZA, Travis Scott, Gorillaz e muitos outros, além de ganhar o Grammy de Melhor Gravação Dance em 2024 por “Neverender” com o Justice.
Agora, após explorar o macro, Parker decide focar no micro. Como ele mesmo explica em entrevista exclusiva à Rolling Stone: “Há beleza no dia a dia. Sabe, o dia a dia é onde nossa vida está. É onde nossa vida está agora mesmo”. Essa mudança de perspectiva é o coração pulsante de Deadbeat.
As inspirações vieram da cultura bush doof e da cena rave da Austrália Ocidental — festas no meio do nada, envoltas de mata, longe das cidades, onde a música eletrônica encontra a vastidão do interior australiano. Para ele, “a liberdade e a forma como eles fazem me chamam atenção. É totalmente off the grid. É longe da cidade. Longe do mundo real. É só uma forma de se desconectar da realidade”.
Se antes a ida para a eletrônica era só um experimento, agora ela se concretizou em Deadbeat — e logo na concepção do disco. “Era algo que eu amo fazer, sabe? Eu sempre amei música eletrônica, sempre amei dance music. Mas eu simplesmente não tinha confiança para seguir isso. E dessa vez eu pensei: ‘Por que não?’”.
Liricamente, Deadbeat apresenta Parker canalizando uma “deprê sem fim” — um cara autodepreciativo preso em um loop de feedback negativo quando deveria ter sua vida organizada há muito tempo.
Dentro de Deadbeat
O álbum abre com “My Old Days”, uma entrada perfeita que estabelece o tom do disco. Com vocais suaves de Parker e uma batida simples, mas eficaz, a faixa já indica a direção mais eletrônica do álbum sem abandonar completamente a assinatura psicodélica que define o projeto.
Depois disso, passamos por “No Reply”, que mantém a proposta com resultados igualmente sensacionais. A música compartilha semelhanças com a faixa anterior, mas com um drop no beat que se destaca.
“Dracula”, o terceiro single e terceira faixa, é mais pop e voltada para as pistas de dança. A música mistura o groove clássico do Tame Impala com toques de disco e pop, impulsionada por um baixo quente e groovy, com visuais que se inspiraram muito no longa Pecadores (2025).
Segundo Parker, a faixa foi uma das primeiras pensadas para o álbum e evoluiu de um esboço cru e minimalista para uma faixa mais completa e pop que, segundo ele, “queria ser como uma música de Max Martin“.
Passamos por “Loser”, que traz uma mudança de ritmo bem-vinda, lembrando o Kevin Parker de “Cause I’m a Man” — mais psicodélica e crua emocionalmente, com riffs de guitarra característicos e seguindo com letras autodepreciativas. Seguida por “Oblivion”, um meio-termo entre o Parker dos álbuns anteriores e este novo que utiliza cada vez mais elementos da música eletrônica.
No entanto, depois da metade do álbum, o projeto perde um pouco da força. O ritmo das músicas dá uma queda perceptível, mas há uma faixa que destoa completamente das demais: “Ethereal Connection”, a nona. Pensada para as raves, a música é pesada, techno puro, e a primeira do projeto com mais de sete minutos. Quando perguntado sobre incluir uma faixa tão diferente, Parker explicou: “No fim das contas, eu só queria. Parte de ser artista é seguir seu coração. E fazer uma faixa techno completa e colocá-la no álbum é meio que o que meu coração queria”. É admirável a honestidade, mas para quem está acostumado com os grooves psicodélicos de “The Less I Know the Better”, provavelmente vai estranhar.
Mas o álbum se redime na canção final. Apesar de ter sido o primeiro dos singles — porque Parker achou que “era uma boa introdução ao álbum, mesmo sendo a última faixa” — “End of Summer” encerra o projeto no topo, justificando sua escolha. É uma música com um refrão memorável, efeitos vocais bem colocados e texturas que capturam a atenção. É o Tame Impala em sua melhor forma, fundindo de vez sua nova versão com a antiga.
Tame Impala mais maduro
Deadbeat é um álbum que encontra poesia na rotina. É Kevin Parker se permitindo ser imperfeito, tanto como artista quanto como pessoa, e transformando essa imperfeição em arte dançante. Agora muito mais maduro e sendo pai — visto na capa do disco —, como ele mesmo afirmou, Deadbeat é resultado de maturidade aliada ao desejo de correr riscos.
O álbum tem seus momentos altos extraordinários que mostram Parker em forma inspirada, fundindo suas sensibilidades psicodélicas com nova confiança na música eletrônica.
Deadbeat é um bom álbum — às vezes até ótimo. Mas, quando comparado ao brilhantismo revolucionário de Currents, ele ainda fica atrás. É Parker dando um passo lateral interessante, não um salto transformador para frente. E talvez esteja tudo bem. Afinal, como o próprio álbum argumenta, nem tudo precisa ser grandioso. Às vezes, é suficiente simplesmente ser.