Música
Conheça Jonathan Ferr, o pianista que mistura o jazz e autotune

No Brasil, não é todo dia que um artista de jazz ganha os holofotes — na verdade, nunca foi. De tempos em tempos, um ou outro músico consegue chamar atenção: Hermeto Pascoal, Leny Andrade, João Gilberto, Bola Sete… nomes que atravessaram fronteiras sonoras e culturais, mas que ainda são exceções em um gênero que, por aqui, costuma habitar o subterrâneo da música popular. O jazz brasileiro sempre existiu, mas quase sempre ficou à margem, visto como algo distante, elitizado ou difícil demais.
É nesse cenário que surge Jonathan Ferr, carioca de Madureira que decidiu virar essa página e escrever um novo capítulo da história do jazz no país. Ele contou tudo em uma entrevista exclusiva para a Rolling Stone.
Pianista em primeiro lugar, como ele mesmo diz, compositor e expoente do gênero no Brasil, Ferr entendeu cedo que não caberia dentro de moldes impostos. “Eu sempre fui muito questionador sobre o status quo que me apresentavam”, contou.
Essa inquietação o levou a criar um som próprio, o urban jazz, que mistura improviso e beat, espiritualidade e rua, tradição e modernidade. O resultado é uma música que carrega o piano como lar, mas se abre ao mundo. Afinal, como o próprio Ferr resume: “Eu sou pianista. Todo o restante que eu uso é artifício — autotune, voz, poema — é livre expressão desse lugar que começa a partir do piano”.
As origens do amor pelo piano e jazz
A relação de Jonathan com o piano foi construída ainda cedo, em um espaço doméstico de afeto e curiosidade. “Quando eu tinha uns sete para oito anos, eu via um programa chamado Pianíssimo, que era do Pedrinho Mattar, um pianista já falecido que tocava jazz e algumas coisas de bossa nova no piano. Eu adorava”, recorda.
A relação de Jonathan com o piano foi construída ainda cedo, em um espaço doméstico de afeto e curiosidade. Quando tinha sete anos, assistia ao programa Pianíssimo, apresentado por Pedrinho Mattar – “um pianista já falecido que tocava jazz e algumas coisas de bossa nova no piano. Eu adorava” –, na Rede Vida.
Nas noites de sábado, ele se acomodava com os pais para assistir àquele show televisivo em branco e preto enquanto os irmãos dormiam. “Ficávamos conversando e vendo esse programa, e eu ficava ali sentado com eles, recebendo o carinho dos dois, comendo uma pipoquinha ou uma pizza que meu pai fazia.” Essas memórias de afeto e presença se tornaram o terreno onde seu sensível ouvido musical foi cultivado.
Mas o jazz como linguagem profunda só o fisgou aos 18 anos, quando ouviu A Love Supreme (1965), de John Coltrane, em uma aula de apreciação musical: “Quando deu play naquele saxofone visceral… falei: ‘Meu irmão, que viagem é essa?’ Um negócio transcendental que me levou para outras esferas.” A partir daí, Ferr se lançou numa missão de absorver o jazz: escutou Coltrane, Miles Davis, Herbie Hancock e buscou referências no jazz brasileiro, no legado de Hermeto Pascoal, Azymuth e muitos outros. Com o tempo, essas escutas se cruzaram com suas raízes culturais: música negra, rap, batidas, os ruídos da cidade, todos conversando dentro dele.
Ferr não seguiu uma trajetória puramente romântica: ele também estudou formalmente. Passou pela Escola de Música Villa-Lobos (Rio de Janeiro), onde adquiriu noções de teoria, regência, arranjo e orquestração. Essa fusão entre estudo e vivência, entre a rua e os livros, moldou sua identidade artística: um jazz visceral, mas também tecnicamente apurado.
Trilogia do Amor (2019): seu primeiro trabalho
O primeiro disco de Jonathan como músico profissional, o álbum Trilogia do Amor, traz colaborações com Donatinho, Alma Thomas e Mari Milani, entre outros nomes, além de arranjos de cordas, timbres eletrônicos e uma proposta conceitual forte.
Trilogia do Amor era um manifesto: lançar sua visão de urban jazz, colocar piano, sintetizadores e voz em diálogo, explorar referências afrofuturistas, climas espirituais e corações abertos. Ferr fala de misticismo, espiritualidade, ancestralidade e futurismo — de como ele queria que o amor fosse atravessado por energia, cura e revolução, não apenas sentimentalismo.
Musicalmente, o álbum já apresentava pontos fortes que se tornariam marcas registradas: arranjos de cordas que dialogam com batidas eletrônicas; uso de instrumentos acústicos como piano Rhodes e sintetizadores; transições fluidas entre jazz e elementos de beat. Ele não usou, ainda nessa fase, vocais com autotune pesados ou rupturas radicais, mas plantou a semente de que o jazz seria apenas o ponto de partida para várias outras direções.
Esse álbum fez com que o nome Jonathan Ferr começasse a ecoar fora dos nichos instrumentais: ele passou a ser visto como um artista visionário capaz de aproximar o jazz de plateias que nunca tinham ouvido esse tipo de sonoridade.
Cura (2021): reconstrução
Dois anos depois, num contexto marcado pela suspensão de shows e pelo isolamento da pandemia, Jonathan lançou Cura, um álbum intimista centrado no piano e nas emoções do momento.
“Cura tem a ver com o curamento que estava no processo de pandemia. Quando eu compus essas canções, nem imaginava que iriam virar um álbum, na verdade. Eram músicas que eu fazia para me curar — quase como um mantra que eu ficava tocando no piano. Eu entrava numa viagem minha para sair da ansiedade que estava sentindo pela possibilidade de perder minha família e amigos queridos pela pandemia e tantas outras coisas que acho que todo mundo passou. Eu tinha esse processo comigo muito forte, então o piano foi um lugar onde eu me ajudava a me curar nesse sentido”.
O disco traz nove faixas com títulos como “Esperança“, “Amor“, “Felicidade” e “Choro” — nomes que funcionam quase como estados de alma. A obra também reúne participações que ampliam essa dimensão: o violoncelista Jacques Morelenbaum, o cantor Serjão Loroza e a filósofa Viviane Mosé aparecem em colaborações pontuais.
Sonoramente, apesar de minimalista, ele não é completamente nu: há sutis texturas eletrônicas, arranjos de cordas delicadas e atmosferas que suspiram entre o interno e o cósmico — mais um passo em direção à consolidação do novo gênero. Neste trabalho, Ferr demonstra que pode ser vulnerável e profundo ao mesmo tempo, construindo pontes entre introspecção e linguagem moderna.
Liberdade (2023): depois da cura vem o quê?
“Cura me levou para Liberdade, o disco seguinte. A proposta dele vem de um pensamento de Nietzsche, que fala que nunca é alto preço a se pagar pelo privilégio de pertencer a si. Depois da cura, depois que o curamento acontece, eu me emancipo. Me emancipo das coisas que me prendem”.
Um álbum de autonomia simbólica e musical — um disco que diz: “Eu escolho quem sou e como me mostro”. É aqui que ele incorpora mais elementos eletrônicos, colaborações com artistas de rap e vozes femininas (Luedji Luna, Rashid etc.) e uma concepção mais pop sem deixar o jazz de lado. O álbum foi bem recebido: Liberdade foi escolhido como um dos 50 melhores álbuns nacionais de 2023 pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
Liberdade consolidou Ferr como uma figura de aproximação: o jazz que atrai novos ouvintes, que conversa com o pop e com o rap, mas sem desfazer sua base instrumental e sua sofisticação harmônica.
LAR (2025): a casa expandida da música
E então chegamos a LAR, seu mais novo lançamento e, mais do que um novo capítulo, a síntese de um ciclo pessoal e estético. Concebido depois da morte do pai, durante a turnê de Liberdade, o disco nasce de uma pergunta que atravessa o artista: o que é lar?
“O lar sou eu, o lar é minha família, são as pessoas que eu amo… é a casa, a estrutura física. É a cultura que me habita independente do território que eu vá”, explica Ferr.
A perda abriu uma fresta por onde entrou luz. Ele conta que viu o enterro do pai por Zoom, “no ápice” de uma agenda de festivais na Europa, e que a última conversa entre os dois — um telefonema antes do voo — virou alívio: “Pai, eu tô te levando pra Europa junto comigo… Você tem mérito nisso aí”. A frase ganhou novo sentido quando o pai partiu; desde então, Ferr repete publicamente o recado: diga que ama enquanto há tempo.
Musicalmente, LAR se apresenta como um mergulho em 11 faixas que passeiam do urban jazz ao hip hop, do neo-soul à música brasileira, com participações que também contam essa história de pertencimento: Marcos Valle (“ALMAR“), um discurso de Pedro Bial (“PERMANÊNCIA DO SOM“), Luccas Carlos (“TUDO O QUE SOU“), Dino D’Santiago e Nova Orquestra (“INFINITO“), Ana Karina Sebastião (“CASA“), Duda Raupp (“EIXO NOVO“) e Jok3r (“RARO” e “VISCERAL“).
A narrativa reforça o arco iniciado nos últimos projetos. Se o primeiro tratava da autocicatrização e o segundo da emancipação, LAR representa a presença absoluta e o entendimento de quem se é no mundo.
Se fosse um espaço físico, “seria numa montanha, com pé direito bem alto, um piso grande, várias paredes de vidro, um piano ‘bem bonito’ no meio da sala e com muito verde”, brincou.
É nesse projeto que Ferr adotou de vez o autotune, não como adorno oportunista ou muleta, mas como linguagem, ferramenta. Ele conta que começou a experimentar em 2022, ouvindo muito trap e hip hop, e partiu para o gesto: “Cara, eu vou tentar trazer o autotune para o jazz… no Brasil não tem, eu sou o primeiro cara a fazer isso”. Ele sabe que “uma galera torce o nariz”, mas insiste porque o efeito “me faz legitimar quem eu sou”.
Mais do que efeito, é técnica e contexto: “Eu uso o autotune de outra maneira… melodias modais, harmonias noutro lugar”, explica, descrevendo como cruza a voz “meio futurista” com a banda, saxofone improvisado e harmonias de jazz.
LAR é o trabalho mais acessível de Ferr sem perder profundidade. O piano ainda guia, mas agora ele abre espaço para canções que respiram com naturalidade pop.
Perguntado sobre a nova fase da carreira em comparação ao Jon lá do primeiro trabalho, o artista disparou: “Eu não quero ser o mesmo artista… adoro artistas que se propõem a fazer coisas novas”.
E depois de LAR, vem o quê?
Depois de LAR, Jonathan pretende entrar no lar do maior número de pessoas possível:
“Um sonho meu é fazer um disco que seja popular o suficiente para chegar no máximo de pessoas possível. Fazendo exatamente o que eu tô fazendo, falando de espiritualidade, de amor, de autoconhecimento, que é a coisa que eu mais gosto de fazer”.
Por fim, Ferr reflete de maneira otimista: “Acho que o sonho já tá acontecendo”, e realmente está. Nos últimos meses, ele foi chamado para participar do projeto Canto Djavan, gravando, com autorização do próprio, a versão de “Adorava Me Ver Como Seu” e “Pétala“, participou de outros grandes projetos brasileiros como BUNMI (2025), de Stefanie, e virou a capa da playlist de “Brasilidades” do Spotify e de “Caramelo“, do YouTube.
É difícil não projetar um sucesso maior para Jonathan Ferr. LAR prova que ele tem uma sonoridade interessante, domínio de linguagem, das técnicas e visão — sabe o que está fazendo, para onde quer ir e com quem quer caminhar.
O urban jazz que ele lapidou é, hoje, um idioma com potência de popularizar o instrumental sem perder densidade; dá para vê-lo ocupando festivais maiores, alcançando novos públicos e abrindo portas para quem vier atrás. Se a música de Ferr é uma casa de portas abertas, o anfitrião também é — e essa combinação, rara, costuma transformar bons artistas em nomes incontornáveis.
+++LEIA MAIS: Jonathan Ferr lança ‘LAR’, novo álbum que explora memória e pertencimento