Música
Ace Frehley foi um grande guitarrista — e merece ser mais reconhecido por isso

Ace Frehley, o Spaceman, nos deixou nesta quinta-feira, 16. O guitarrista e primeiro integrante original do Kiss a falecer tinha 74 anos e estava internado, desde o fim de setembro, após uma queda em seu estúdio caseiro.
Surpreende que o músico, diversas vezes acusado por seus ex-companheiros de não gostar de trabalhar, tenha vivenciado seus últimos momentos consciente justo em ambiente laboral. Frehley se tornou bastante produtivo em suas décadas finais de vida, quando enfim conquistou a sobriedade após quase toda a vida sofrendo com a dependência química.
Seja pelas afiadas declarações dos antigos parceiros Paul Stanley e Gene Simmons, seja por seu estilo “clássico” e sem concessões de tocar guitarra, Ace nem sempre foi reconhecido pela sua enorme capacidade artística. Mas é provável que um dos músicos mais influentes do hard rock passe, agora, a ser reconhecido por tudo que fez, especialmente na década de 1970.
Nascido em 27 de abril de 1951 no Bronx, em Nova York, Paul Daniel Frehley foi incentivado desde cedo a ouvir e, consequentemente, envolver-se com música. Veio de uma família bastante aberta à arte. Na adolescência, começou a tocar guitarra. Decidiu transformar aquilo em profissão após ficar fascinado por nomes como Jimmy Page (Led Zeppelin), Eric Clapton (nos tempos de Cream) e Jimi Hendrix. No som, apenas boas referências.
Na vida, nem tanto. Ainda jovem, entrou para gangues e chegou a abandonar temporariamente os estudos. Mal dá para imaginar um sujeito como Ace como um criminoso: era bem aéreo e fácil de se arrancar uma risada estridente.
Após passar por várias bandas e profissões entre o fim dos anos 1960 e início de 1970, viu um anúncio em classificado. Um trio procurava um guitarrista. Entrou na fila de testes vestindo um tênis de cada cor e parecendo vir, mesmo, de outro espaço. Gene Simmons, vocalista e baixista, relembra (via site Igor Miranda):
“Num determinado ponto, Bob Kulick, que mais tarde tocou com Meat Loaf, seria o guitarrista. Mas ele não tinha a aparência ideal. Falávamos com ele quando aquele cara [Ace] entrou com um pé num tênis laranja e o outro num vermelho, e um bigode meio alaranjado. Ele meio que se desequilibrou e foi direto contra uma das paredes. Ficava andando e ignorando todos. O cara era tão pirado, tão aéreo, voltado para o seu próprio mundo! Ainda tentou furar a fila.”
Simmons o repreendeu pela postura. Frehley insistiu para tocar logo, dizendo: “mas você não quer rock?”. E tome rock. A performance daquele doidão o colocou na banda, que se tornaria o Kiss e teria até mesmo o logotipo desenhado por ele.
Por decisões equivocadas e também azar, o Kiss levou um tempo para estourar. Só rolou no fim de 1975, com seu quarto lançamento: o álbum ao vivo — que de “ao vivo” tem pouco — Alive!, uma demonstração pura da genialidade de Frehley.
Ouça o caos controlado de seus solos em “Deuce”. Os bends precisos em “Strutter”. O crescimento conforme o desenrolar em “Got to Choose”. O groove inimitável de “Parasite”, tanto no riff principal quanto nos solos. A arrasadora performance na jam final de “She”. O solo conclusivo épico de “Black Diamond”. Até em “Rock and Roll All Nite”, que se transformaria em hit — e em clássico —, ele deu um jeito de enfiar um solo curto, mas preciso, já que a gravação em estúdio não lhe dava esse espaço.
https://www.youtube.com/watch?v=videoseries
Com a palavra, justamente Simmons, um de seus maiores críticos, à Guitar World:
“Ele sabia das coisas. Quando ele se importava — durante os três primeiros discos, eu diria —, ele era ótimo. Dava até para cantar aqueles solos dele. Era como ópera. A integridade de seu estilo era instantaneamente reconhecível. Assim que ele tocava, você sabia que era ele. Este é provavelmente o melhor elogio que você pode fazer a um guitarrista.”
Frehley seguiu genial nos anos seguintes, quando o Kiss atingiu o estrelato. Mas devido aos vícios em desenvolvimento, a relação com os sóbrios e exigentes Paul Stanley e Gene Simmons começou a azedar. Ainda assim, teve performance exemplar nos discos Destroyer (1976), Rock and Roll Over (1976) e Love Gun (1977). No ano seguinte, o grupo decidiu lançar quatro álbuns solo, um para cada integrante. Qual fez mais sucesso? O de Ace, que nos trabalhos seguintes, Dynasty (1979) e Unmasked (1980), teria mais canções assinadas e vocais assumidos por si.
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Em meio aos vícios e brigas com Simmons e Stanley, Frehley deixou o Kiss em 1982. Demorou cinco anos para lançar um novo álbum sozinho — ou melhor, com o Frehley’s Comet, junto de quem ganhou disco de platina nos Estados Unidos. Mais dois trabalhos saíram na década de 1980, um com o Comet e outro assinando solo.
Talvez, a partir daí, Ace tenha se acomodado mesmo. Sua volta para o Kiss, ocorrida em 1996, o mostrou menos afiado na performance ao vivo e até mesmo pouco capaz de contribuir em estúdio, a ponto de ter tocado apenas em duas faixas do álbum de reunião Psycho Circus (1998). Em 2002, ele deixou novamente o grupo, encerrado no fim de 2023 com Tommy Thayer reproduzindo seus solos nota por nota e usando sua maquiagem, fantasia e até modelo de guitarra.
Thayer não foi o único inspirado por Frehley. Músicos que alteraram o curso da guitarra elétrica no âmbito do som pesado já o mencionaram diretamente como referência. Dave Mustaine (Megadeth), Slash (Guns N’ Roses), Dimebag Darrell (Pantera) e Tom Morello (Rage Against the Machine) são apenas alguns dos vários. Todos eles destacam que o trabalho de Ace com o Kiss serviu como “porta de entrada” para o rock, já que o visual de super-herói e os solos de melodia fácil eram atraentes para crianças e adolescentes.
Darrell, assassinado em 2004 e enterrado em um caixão do Kiss, ofereceu em 1993 uma declaração que serve como a melhor forma para se encerrar este texto. À Guitar World, em 1993, ele arrematou:
“Ace é deus, e o solo de ‘Shock Me’ é matador. A versão de estúdio tem muita produção nas partes de guitarra principal. Também adoro os efeitos, especialmente o phaser na última nota. Cara, eu fico todo nervoso apenas por falar de Kiss! O vibrato de Ace me cativou e sempre tento aplicá-lo ao meu toque. Ele conseguia extrair muito de uma única nota. Com ele, uma nota poderia tomar o lugar de 12 notas.”
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