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Ideias

a fragilidade de acordos com grupos terroristas

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Em meio a uma das fases mais tensas do conflito entre Israel e o Hamas, o mundo acompanhou, nos últimos dias, o anúncio de um acordo de paz mediado pelos Estados Unidos. A proposta norte-americana busca equilibrar segurança e diplomacia, oferecendo garantias multilaterais e monitoramento internacional; além disso, pretende contemplar as demandas de segurança israelenses com as necessidades humanitárias em Gaza e articula um plano de vinte pontos que inclui a liberação de reféns, trocas de prisioneiros e um cronograma para o desarmamento gradual do Hamas.

Ainda assim, apesar do clima de aparente euforia, não se pode deixar de perceber certo grau de ceticismo: tanto Israel quanto seus aliados temem que o Hamas utilize o acordo como mais uma pausa estratégica para se rearmar e reorganizar suas forças.

Essa desconfiança não é infundada. A história mostra que grupos insurgentes e terroristas frequentemente tratam tréguas e acordos de paz como instrumentos táticos, usados para recompor forças ou conquistar espaço político. Casos como os das FARC, na Colômbia, do Exército Republicano Irlandês (IRA), na Irlanda do Norte, e do Euskadi Ta Askatasuna (ETA, Pátria Basca e Liberdade), no País Basco, revelam que esses grupos raramente abandonam a violência de forma definitiva. 

Pior: em muitos casos, eles usam as estruturas democráticas e políticas tradicionais – que costumeiramente passam a integrar após acordos de paz – como meios de corrosão institucional e tomada gradual do poder. O fenômeno não se restringe à América Latina ou à Europa; observa-se também no Oriente Médio, como no Líbano, onde o Hezbollah, outrora uma milícia insurgente de caráter claramente terrorista, tornou-se a principal força política do país.

As FARC e o uso político dos acordos de paz

O processo de paz colombiano é um dos exemplos mais claros de como acordos com grupos armados podem se transformar em instrumentos de transição estratégica, e não de pacificação genuína. Em 2016, o governo de Juan Manuel Santos assinou com as FARC um acordo histórico que previa desarmamento, reintegração social e participação política. Com forte apoio internacional, inclusive dos Estados Unidos e da ONU, o acordo foi apresentado como um marco de reconciliação nacional.

Contudo, a experiência revelou um fenômeno de dupla face. De um lado, facções dissidentes se recusaram a depor armas e retomaram o controle de territórios ligados ao narcotráfico. De outro, parte dos ex-integrantes das FARC optou por atuar dentro do sistema político, formando o partido Comunes, que passou a disputar eleições e ocupar cadeiras no Congresso. O resultado foi que a antiga organização guerrilheira migrou da luta armada para a arena política, mas sem romper integralmente com sua visão revolucionária. O atual presidente colombiano, Gustavo Petro, embora não tenha sido membro formal das FARC, é oriundo do mesmo contexto guerrilheiro e foi militante do M-19, outro movimento armado da esquerda colombiana, o que simboliza a ascensão de uma cultura política nascida das armas ao centro do poder estatal.

Assim, o caso colombiano evidencia que, para além das armas, grupos insurgentes podem empregar os próprios mecanismos democráticos – partidos, eleições, movimentos sociais – como meios de erosão institucional. O acordo de paz, nesse sentido, torna-se uma pausa tática: uma trégua que permite reorganizar estratégias e buscar, pela via institucional, o mesmo objetivo que antes era perseguido exclusivamente pela força.

O IRA e a instrumentalização política da trégua

O conflito na Irlanda do Norte oferece outro exemplo da instabilidade das tréguas com organizações armadas. Durante as décadas de 1970 e 1990, o Exército Republicano Irlandês (IRA) anunciou diversos processos de cessar-fogo, não cumpridos, com o governo britânico. O Acordo da Sexta-feira Santa, assinado em 1998 com forte apoio diplomático de Washington, representou um marco na tentativa de pacificação da região. Ainda assim, o IRA não foi capaz de controlar integralmente suas dissidências. Facções radicais, como o Real IRA, o Continuity IRA e o Provisional IRA rejeitaram o acordo e continuaram praticando atentados.

A atuação norte-americana foi essencial para sustentar o processo político, mas não suficiente para neutralizar a fragmentação interna do grupo. O caso irlandês demonstra que a mediação externa pode facilitar o diálogo e garantir monitoramento, mas não elimina a natureza insurgente e descentralizada de grupos armados. A paz, embora formalmente assinada, permaneceu vulnerável à ação de extremistas contrários à desmobilização completa.

O IRA e seus aliados transformaram-se em importante força política através do partido Sinn Féin, que hoje participa da governança local e mantém forte presença no Parlamento irlandês. Embora o processo irlandês seja considerado um relativo sucesso, ele também demonstra como a integração política de grupos insurgentes pode se converter em instrumento de influência ideológica e pressão institucional. O IRA utilizou o período pós-acordo para consolidar poder político, substituindo a violência direta por estratégias de mobilização social e de controle de narrativas, demonstrando que, mesmo sem armas, o movimento manteve sua identidade radical e suas redes de apoio, agora sob nova roupagem.

O ETA e o desarmamento incompleto no País Basco

A experiência do ETA, na Espanha, reforça essa lógica de resistência à desmobilização. Ao longo de décadas, a organização separatista basca alternou entre declarações de cessar-fogo e retomadas de violência. Mesmo após anunciar o fim definitivo de suas atividades armadas em 2011, levou 7 anos para informar a conclusão de seu processo de desarmamento, porém parte de seu arsenal nunca foi oficialmente entregue. Durante as negociações de 2006, a ETA chegou a declarar o fracasso das conversas e voltou a atacar, alegando má-fé do governo espanhol.

Ainda que sem o envolvimento direto dos Estados Unidos, o caso basco recebeu atenção e apoio de potências ocidentais interessadas em promover estabilidade na Europa. Isso, no entanto, não impediu o grupo de usar o cessar-fogo como manobra política. Assim como nas experiências da Colômbia e da Irlanda do Norte, percebe-se que a pressão diplomática internacional, por mais intensa que seja, não consegue garantir o cumprimento efetivo dos compromissos assumidos por grupos cuja legitimidade se baseia na coerção armada.

Hamas e Hezbollah: o uso político da resistência

O caso do Hamas, no atual conflito com Israel, ilustra o mesmo fenômeno em escala mais ampla. Embora classificado como organização terrorista por vários países, o Hamas atua também como partido político dominante em Gaza, administrando instituições, impostos e forças de segurança próprias. Os acordos de cessar-fogo são frequentemente usados para consolidar poder interno, reorganizar estruturas militares e ampliar legitimidade política diante da população local.

No Líbano, o Hezbollah representa a forma mais acabada desse processo. Originalmente criado como milícia xiita de resistência contra Israel, o grupo tornou-se o maior partido político do país, integrando o parlamento e exercendo forte controle sobre o governo. Assim como as FARC e o Hamas, o Hezbollah usa a estrutura democrática para legitimar sua presença e influenciar o Estado de dentro para fora, corroendo a neutralidade das instituições e submetendo-as a sua lógica de poder armado.

Esses exemplos mostram que a combinação entre trégua, inserção política e manutenção de força militar cria uma forma híbrida de dominação, na qual a violência e a política caminham juntas.

O papel e os limites da mediação norte-americana

O envolvimento dos Estados Unidos em processos de paz ao redor do mundo, da Colômbia ao Oriente Médio, tem sido marcado por pragmatismo: busca-se conter a violência, estabilizar regiões estratégicas e preservar interesses geopolíticos. Contudo, a experiência mostra que, mesmo com forte capacidade diplomática, Washington enfrenta limites claros. Nenhuma mediação é capaz de transformar a lógica interna de grupos que se sustentam sobre ideologias militantes e sobre o poder das armas.

Nos acordos entre Israel e Hamas, os EUA conseguiram criar canais de diálogo e impor tréguas temporárias, mas não eliminaram as motivações estruturais do conflito. Assim como nas experiências das FARC, do IRA e do ETA, a mediação externa pode abrir portas para o diálogo, mas não garante que os atores envolvidos abandonem a violência ou a manipulação política como ferramentas de poder.

Isso se torna ainda mais acentuado no caso do Hamas, um grupo que nunca construiu projeto político de paz. Sua única moeda é a violência. Cada foguete lançado, cada atentado, cada morte de israelenses eram comemorados como vitória política. A população de Gaza, esmagada pelo bloqueio e pela ausência de alternativas, transformou a violência em plataforma de legitimação: aplaudia o sangue derramado como se fosse a única forma de afirmação frente ao inimigo.

No entanto, essa legitimação superficial encobria uma tragédia mais profunda: a perda contínua de soberania e dignidade para o próprio povo palestino. A cada ciclo de escalada, as promessas de libertação do Hamas se dissolviam em mais escombros, mais vidas perdidas e um isolamento internacional cada vez maior. A paz nunca serviu como ativo. Ao contrário: a paz poderia significar eleições, pluralidade, liberdade, democracia, ventos capazes de extinguir o poder medieval e absoluto do Hamas, e revelar a falência de sua visão e propósitos.

A estratégia do grupo sempre foi inequivocamente clara: a violência, em sua forma mais brutal e primitiva, como cabo eleitoral. Transformaram-se em guardiões de uma resistência que, na prática, usava a covardia como método. Construíram túneis sob hospitais, esconderam arsenais sob escolas e conjuntos residenciais, impondo à população civil o papel de escudo humano, uma tática abjeta que garantiu que a retaliação israelense, inevitável, pudesse recair sobre os inocentes.

A infraestrutura civil, já precária sob o bloqueio, era sistematicamente sacrificada em nome de uma “resistência” que consumia recursos vitais. Essa “resistência” não apenas usava a covardia como método, mas também consumia recursos vitais: hospitais e escolas eram preteridos para a construção de uma vasta rede de túneis e fábricas de mísseis, desviando ajuda humanitária e aprofundando a miséria da população. 

O resultado é uma Gaza asfixiada economicamente, com taxas de desemprego juvenil superiores a 60% e uma dependência quase total da ajuda externa, enquanto a liderança do Hamas prosperava. Cada ataque bem-sucedido era propaganda, cada cadáver se tornava cartaz político, uma instrumentalização abjeta do sofrimento alheio. O 7 de outubro de 2023 foi a apoteose dessa lógica macabra: não uma vitória militar, mas um gesto suicida de autopromoção, brutal, desumano e covarde, que selou o destino de centenas de milhares de palestinos inocentes, condenados a pagar o preço pela barbárie de seus autoproclamados protetores.

O Hamas revelou-se pelo que sempre foi: um câncer. Não constrói, apenas destrói. Não governa, apenas domina, impondo um regime que suprime brutalmente a liberdade de expressão, persegue oponentes políticos e impõe restrições severas às liberdades individuais. Desde a violenta tomada de Gaza em 2007, que eliminou qualquer resquício de pluralismo político e democrático, o Hamas sistematicamente minou as fundações de uma sociedade capaz de autodeterminação. Ao desviar ajuda humanitária para fins militares, a reprimir dissidências internas e a priorizar uma guerra ideológica sem fim, o grupo condenou gerações de palestinos à privação e à desesperança.

É um regime que, sob a bandeira da ‘resistência’, instrumentaliza a população civil, viola flagrantemente o direito internacional humanitário e sacrifica qualquer perspectiva de desenvolvimento ou futuro em nome de sua agenda maximalista. A cada ciclo de violência que ele orquestra – como nas operações de 2008-09, 2012, 2014 e 2021, que devastaram Gaza e custaram milhares de vidas palestinas em detrimento de qualquer avanço político –, a vida em Gaza regride, as oportunidades minguam e o sonho de um Estado palestino viável e soberano se torna mais distante. Contagia grupos armados na região e ameaça a estabilidade com sua lógica de morte, uma metástase que impede a cicatrização de velhas feridas e o surgimento de novas perspectivas. Como todo câncer, não se discute com ele: elimina-se, ou ele prolifera, consumindo tudo à sua volta.

Os exemplos históricos e contemporâneos analisados revelam um padrão consistente: acordos de paz e tréguas são frequentemente usados como pausas táticas e trampolins políticos por grupos cuja natureza é incompatível com a estabilidade institucional. Esses movimentos operam sob a lógica da infiltração: cessam o fogo momentaneamente, integram-se às estruturas políticas e, a partir de dentro, corroem o tecido democrático em nome de uma causa ideológica que rejeita a negociação como valor permanente. A mediação norte-americana, embora necessária, talvez não suficiente para modificar essa essência, pois se depara com organizações que enxergam o diálogo não como ponto final, mas como meio de sobrevivência estratégica.

O caso do Hamas exemplifica de forma paradigmática essa contradição. Apostou que o mundo ainda vivia na era da tolerância automática com os fracos e ressentidos, aquela em que narrativas de vitimização mobilizam apoio internacional incondicional e blindam atos de barbárie sob o véu da resistência. Mas o cálculo foi equivocado. O que encontrou não foi um Ocidente submisso, mas um gigante enfurecido: Israel, estado que, ao longo de décadas, buscou coexistência e integração regional. Israel firmou tratados históricos de paz com o Egito (1979) e com a Jordânia (1994), participou da Conferência de Madri (1991), promoveu os Acordos de Oslo (1993) e, mais recentemente, consolidou os Acordos de Abraão, normalizando relações com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos.

Israel representa, assim, o exemplo cristalino da diplomacia pragmática, a diplomacia que o Hamas e seus congêneres tanto abominam, justamente porque ela comprova que a paz é possível quando há disposição real para o compromisso. Por isso, o Hamas reage com terror: porque cada avanço diplomático israelense mina a narrativa de eterna opressão em que sustenta sua legitimidade. Ao lançar ataques bárbaros e romper tréguas, o grupo desafia a própria ideia de coexistência.

Diante disso, a resposta israelense, mais do que militar, é simbólica. Representa a reafirmação da meritocracia da força: quem ataca sem possuir poder real, e pior, sem um plano de futuro para o povo que alega representar, assina sua própria sentença de destruição e arrasta consigo sua nação para o abismo. A lição histórica que se impõe é clara: nenhuma causa sobrevive indefinidamente apoiada na vitimização e no terror. A força que sustenta o ódio é autodestrutiva, enquanto a que nasce da busca por coexistência e segurança constrói nações duradouras. O Hamas, ao eventualmente repetir o erro de tantos grupos insurgentes do passado, não desafia apenas Israel: desafia a lógica da história, que inexoravelmente cobra um preço daqueles que confundem trégua com triunfo e paz com fraqueza.

O momento, entretanto, é de comemorar, apesar do ceticismo. O palco pertence, novamente, àqueles que se prepararam, não àqueles que, presos em uma ideologia arcaica e destrutiva, escolheram o caminho da miséria e da morte para seus próprios povos. A tragédia de Gaza é, em grande parte, o legado amargo de lideranças amorais e anômicas que escolheram a morte em vez da vida, o terror em vez do futuro e o caos e destruição em vez da esperança.

Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.

Jason Pascoal é jornalista, escritor e empreendedor em educação.

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