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‘Nouvelle Vague’ apresenta os bastidores de ‘Acossado’ em exercício cinéfilo divertido e agradável

Mais do que um movimento cinematográfico, a nouvelle vague foi uma revolução de linguagem. Nascida na França no fim dos anos 1950, ela colocou a câmera nas mãos de jovens críticos e sonhadores que queriam libertar o cinema das amarras de estúdio e aproximá-lo da vida real.
Entre seus nomes mais celebrados está o de Jean-Luc Godard, que se tornou o símbolo máximo dessa rebeldia: com Acossado (À bout de souffle, 1960), ele transformou a improvisação, o corte brusco e o acaso em armas poéticas, redefinindo o modo como o mundo enxergava a imagem em movimento.
Mais de seis décadas depois, Richard Linklater (Assassino por Acaso) revisita essa faísca inicial com Nouvelle Vague, um filme que não busca apenas reencenar a revolução, mas compreender o que pulsa no coração de quem ama o cinema.
Há algo de irresistível na ideia de um cineasta norte-americano recriar o set de Acossado. O risco da reverência vazia era grande, mas Linklater escapa dele com facilidade. Em vez de um exercício autoconsciente, o cineasta faz um filme leve, espirituoso e caloroso, sobre o prazer — e a loucura — de filmar e de pertencer a uma comunidade que acredita nas imagens.
A câmera passeia entre bastidores e nomes e caras da época, revelando não apenas os personagens e ambientações, mas o próprio amor que sustenta a feitura do cinema. É uma brincadeira de cinéfilo para cinéfilos, mas nunca exclusiva: é possível embarcar mesmo sem ter assistido a Acossado.
No longa, apresentado ao público brasileiro na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, após escrever para a conceituada revista Cahiers du Cinéma, o jovem Godard (Guillaume Marbeck) decide que fazer filmes é a melhor forma de crítica cinematográfica. Ele consegue que seu amigo e produtor Georges de Beauregard (Bruno Dreyfürst) financie um longa de baixo orçamento, criando um roteiro resumido junto com François Truffaut (Adrien Rouyard) sobre um casal de gângsteres.
Ao recriar o nascimento de um mito, Linklater fala também de seu próprio fascínio juvenil pelo cinema e do desejo de reviver o instante em que tudo parecia possível — um tema que atravessa toda a sua filmografia, de Jovens, Loucos e Rebeldes (1993) e Boyhood: Da Infância à Juventude (2014) a Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial (2022), obras que capturam o olhar maravilhado de quem descobre o mundo (e a si mesmo) pela primeira vez.
Em Nouvelle Vague, esse encantamento se traduz na câmera, que observa com doçura tanto a juventude da nouvelle vague quanto o fascínio de quem ainda acredita no poder das imagens. Ao mesmo tempo, a atenção meticulosa à ambientação — os figurinos, a cenografia, os equipamentos de câmera, os detalhes de Godard — reforça essa ideia, permitindo que o público compartilhe não apenas o mundo físico da época, mas também o entusiasmo e a energia daqueles jovens cineastas e atores franceses, tornando a experiência tão afetiva quanto histórica.
Há, contudo, uma camada de ironia que torna o filme ainda mais interessante e divertido. Guillaume Marbeck encarna um Godard dividido entre o gênio e o ridículo, enquanto Zoey Deutch (Tinha que Ser Ele?) traz luz e rebeldia à sua Jean Seberg, arrependida de ter saído de Hollywood para ir atuar em um filme de um cineasta que “não é Claude Chabrol nem François Truffaut“, sem roteiro e que vive do improviso.
Essa dinâmica entre pessoas e artistas tão opostos dá corpo ao filme, lembrando que toda revolução nasce de pessoas excêntricas e egoístas, mas também aplicadas e apaixonadas. Linklater observa esses egos e entusiasmos com uma pitada de deboche — quase uma comédia de erros sobre o que é fazer arte e conviver com ela.
No fim, Nouvelle Vague é menos uma tentativa de explicar a nouvelle vague e mais um convite para senti-la de novo em algum nível, ainda que não aplique seus preceitos em sua estrutura. Linklater não parece ter grandes pretensões nesse sentido mais formal do fazer cinema, mas sim apenas em celebrar sua persistência e o nascimento de um dos filmes mais celebrados da história da sétima arte. Um tributo que diverte em seu exercício cinéfilo cheio de acenos e referências e, como toda boa homenagem, nos faz lembrar por que amamos o cinema em primeiro lugar.
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