Ideias
Pascal, um escritor para o nosso tempo

A pelo menos cada quarto de século, vemos surgirem nas prateleiras novas edições daqueles livros considerados clássicos, e o motivo principal desse fenômeno não é, certamente, a pouca durabilidade do papel em que haviam sido impressos. Cada geração que se desembaraça de seus conflitos infantis e completa com sucesso sua formação no tesouro das eras passadas precisa afirmar, em primeira pessoa, a sentença de seu tempo, e é nessa espécie de revolução histórica, tantas vezes repetida, que os clássicos, relidos pela nova geração, são acrisolados, e devem passar novamente incólumes, como os três jovens do livro de Daniel, pelas chamas do inquérito: são ainda verdadeiros? São ainda clássicos? Assim, como dizia T. S. Eliot, a história das opiniões humanas sobre os grandes homens passa a fazer parte da história da humanidade. Em suas novas edições, a geração ascendente faz vibrar a voz dos clássicos em seu ar fresco, que matiza e põe esses livros antigos sob nova perspectiva, ainda mais especialmente quando são estrangeiros e publicados em novas traduções. Tudo isso vale para Pascal. Nas palavras de Eliot: “Pode parecer que, sobre Blaise Pascal, e sobre os dois trabalhos em que se funda a sua fama, já foi dito tudo o que havia para dizer. Mas Pascal é um daqueles escritores que serão, e devem ser, estudados novamente por homens de todas as gerações. Não é ele que muda, mas somos nós que mudamos”.
Uma vida marcada pelo sofrimento
Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand, no interior da França, aos 19 de junho de 1623, e entregou o espírito aos 19 de agosto de 1662, em Paris, após uma vida repleta de sofrimentos, ao passar pela qual, apesar de sua inquestionável genialidade, deu um verdadeiro testemunho de mortificação, humildade e amor ao próximo. Como relata sua irmã, Gilberte Périer, na Vida de Pascal que escreveu para preceder a primeira edição dos Pensamentos, “esse homem tão grande em tudo era simples como uma criança no que concerne à devoção. Não somente não havia afetação ou hipocrisia em sua maneira de agir, mas ainda, assim como sabia elevar-se na penetração das mais altas virtudes, sabia baixar-se na prática das mais comuns que edificam a devoção. Todas as coisas eram grandes em seu coração quando serviam para honrar a Deus, e praticava-as como uma criança”.
Gilberte Périer narra que o irmão, que dava sinais de brilhantismo desde a mais tenra infância, perdeu a mãe aos três anos de idade. Seu pai, Étienne Pascal, que era oficial do reino, foi seu único professor, e o instruía em casa no aprendizado do latim, do grego, e da gramática de outros idiomas modernos. Foi quando tinha oito anos que mudaram-se para Paris. Apesar das advertências do pai, Blaise Pascal era um aficionado pela natureza das coisas, pelas ciências e pela matemática, um prodígio da geometria — como fica tão bem ilustrado pelo episódio em que resolveu 32 proposições de Euclides por diversão. Tanto é assim que, aos dezenove anos, inventou a famosa “máquina aritmética”, a primeira calculadora. Ocorre que, desde essa época, Pascal tinha já a saúde muito prejudicada, o que marcaria a sua vida desde então até o fim.
Foi também por essa mesma idade que se deu, como se convencionou chamar, a “primeira conversão de Pascal”, embora ele nunca tivesse sido afeito aos abusos comuns da mocidade. Marguerite Périer, sobrinha de Pascal, conta que, aos 24 anos, “tendo-lhe a Providência divina dado a oportunidade de ler escritos devotos, Deus o iluminou de tal maneira com essa leitura que ele compreendeu perfeitamente que a religião cristã nos obriga a viver tão somente para Deus e a não ter outro objetivo senão Deus”. E acrescenta Giovanni Reale que “esse grande espírito, tão vasto e cheio de curiosidade, que buscava com tanto cuidado a razão e a causa de tudo, conduzia-se como uma criança em matéria de religião, e essa simplicidade dominou-o durante a vida inteira. De maneira que, desde o momento em que resolveu só estudar a religião, não se aplicou nunca às questões curiosas da teologia, e sim em empregar toda a força de sua mente no conhecimento e na prática da perfeição da moral cristã, à qual consagrou todo o talento que Deus lhe deu, nada mais fazendo todo o resto da sua vida além de meditar dia e noite sobre a lei divina”.
Tendo influenciado o próprio pai a uma piedade mais profunda, Blaise Pascal inspirou também a irmã Jacqueline (1625–1661), que decidiu consagrar-se religiosa em Port-Royal des Champs em 1652. Este mosteiro, no qual ingressou sua irmã, é central para a compreensão não só da vida de Blaise Pascal, mas também para compreender o grande conflito do século 17 na França e na Europa. O mosteiro cisterciense de Port-Royal tinha uma sede em Paris e outra em Magny-les-Hameaux, no campo, chamada por isso de Port-Royal-des-Champs. Foi à sombra desse convento que muitos homens, tendo deixado para trás carreira e fortuna, vestiram-se de preto para viver o silêncio e a castidade. Construíram ali casas e fundaram uma escola, que se tornou a cidadela dos jansenistas. Pascal se recolheria ali mais tarde, após uma segunda e intensa conversão.
Narra sua irmã que, aos vinte e quatro anos (1647), sua saúde já era tão terrível que não podia engolir, e apenas sorvia líquidos quentes, gota a gota. Sentia dores de cabeça insuportáveis e ardores intestinais de tal modo que os que se aproximavam ficavam horrorizados ao vê-lo. “Mas meu irmão não se queixava nunca e encarava a coisa como um benefício, […] e com alegria executava todas as penitências”, como atesta sua famosa Prece para pedir a Deus o bom uso das doenças. O suplício era tão grande, porém, que os médicos determinaram cessar toda atividade mental e apenas se divertir com conversações sociais. “Os anos mais mal-empregados de sua vida”, diz Gilberte Périer, mas também é verdade o que diz Eliot: “Pascal é um homem do mundo entre os ascetas e um asceta entre os homens do mundo”, pois foi então que notou, na alma dos convivas dos salões, interessados em questões científicas e literárias, a total impenetrabilidade ao sentimento religioso. Foi então que conviveu, em suma, com os libertinos, os leitores e discípulos de Michel de Montaigne, à conversão dos quais dedicaria, dali em diante, todo labor de sua pena.
Nunca recusava esmola a ninguém, e chegou até a se endividar para socorrer os pobres em suas necessidades
Aos trinta anos (1653), Pascal “desistiu de cuidar da saúde acima da salvação”, e foi para o campo, deixando para trás a vida mundana. Passou a viver sozinho, uma vida de penitência e mortificação dos sentidos. Pessoas que o haviam conhecido antes iam procurá-lo em seu retiro para lhe pedir conselhos, ou tirar dúvidas de fé, e ele as recebia todas por dever de caridade, castigado por um cilício durante as visitas, de modo a não se entregar ao prazer da conversação — o que só se descobriu após sua morte. Gastava a maior parte de seu tempo com as Sagradas Escrituras, que, segundo ele, contêm a “ciência do coração”, inteligível apenas aos de coração reto. O véu que cobre o sentido das Escrituras, para Pascal, vale tanto para os judeus como para os maus cristãos, sendo a verdadeira caridade a sua porta. Nunca recusava esmola a ninguém, e chegou até a se endividar para socorrer os pobres em suas necessidades. Vivia assim um fervoroso amor ao próximo, mas sem jamais permitir que alguém se afeiçoasse por ele, rechaçando o apego da própria irmã. Foi então que, na noite de 23 para 24 de novembro de 1654, “desde por volta das dez e meia da noite até em torno da meia-noite”, Pascal viveu o que chamou de a “Noite de Fogo”, uma experiência profunda e avassaladora da verdade da revelação, ou mesmo uma espécie de êxtase, que o fez anotar um Memorial. Fez dele uma cópia, que levou consigo por toda a vida, costurada na parte interna de seus trajes. Dizia o seguinte:
O ano da graça 1654,
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, papa e mártir,
e outros no martirológio,
Véspera de São Crisógono, mártir, e outros,
Desde cerca de dez horas e meia da noite
até cerca de meia-noite e meia,
Fogo
“Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó”
não dos filósofos e dos estudiosos.
Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.
Deus de Jesus Cristo. Deum meum et Deum vestrum.
“Teu Deus será meu Deus”
Esqueça o mundo e tudo, exceto Deus.
Ele não se encontra senão pelos caminhos ensinados no Evangelho.
Grandiosidade da alma humana.
“Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci”
Alegria, alegria, alegria, choros de alegria.
Eu me separei d’Ele: Dereliquerunt me fontem aquae vivae
“Meu Deus, tu me abandonarás?”
Que eu não seja separado d’Ele eternamente.
“Esta é a vida eterna, que eles te conheçam, único verdadeiro Deus, e aquele que tu enviastes, Jesus Cristo”
Jesus Cristo. Jesus Cristo.
Dele me separei; fugi, renunciei, crucifiquei.
Que eu não seja separado d’Ele novamente.
Ele não se conserva senão pelos caminhos ensinados no Evangelho.
Renúncia total e doce.
Submissão total a Jesus Cristo e a meu diretor (Padre Antoine Singlin, almoner do monastério).
Eternamente em alegria por um dia de exercício sobre a Terra.
Non obliviscar sermones tuos. Amen.
Foi logo após essa marcante experiência que Pascal escreveu as Provinciais (1656–1657), em defesa de seu amigo Antoine Arnauld, então líder dos jansenistas no lugar de Saint-Cyran, e co-autor com Pierre Nicole da Lógica de Port-Royal, que criticava o currículo cartesiano.
O século 17 é marcado pelo conflito entre a Sorbonne e Port-Royal, entre jesuítas e jansenistas. No que diz respeito à teologia, a disputa girava em torno da questão da graça e do livre-arbítrio, mas se refletia diretamente na moral e nos costumes, inclusa a maneira de considerar a celebração dos sacramentos. De um lado, a graça contingente, tendo por pouco a economia dos méritos (como os jansenistas liam Agostinho), e de outro a graça suficiente que é dada a todos igualmente, possibilitando, por meio do livre-arbítrio, a decisão de agir (o molinismo dos jesuítas). É preciso levar em boa conta que os jesuítas eram amigos da coroa, e que Luís XIV via os jansenistas, desprezadores do mundo e do poder, como um foco de resistência ao seu absolutismo, acusando-os, por exemplo, de defender as Frondas. Jansênio (1585–1638), holandês professor em Lovaina e posteriormente Bispo de Ypres, na Bélgica, era de fato um opositor dos jesuítas, especialmente de Luís de Molina (1535–1600), os quais enxergava como partícipes do espírito do Renascimento. Apoiado em Agostinho, que combatera os pelagianos, combatia agora o que acreditava ser um otimismo exacerbado sobre o livre-arbítrio — e que era, por sua vez, uma resposta às doutrinas de Lutero. Sua famosa e gigantesca obra Augustinus, porém, só foi publicada postumamente (1640). Por motivação dos jesuítas, no ano seguinte o Santo Ofício condenou o livro. Anos mais tarde, um professor da Sorbonne propôs cinco teses, que acreditava sintetizarem o conteúdo do Augustinus. Foram, então, condenadas por Inocêncio X em 1653.
Os jansenistas, liderados por Antoine Arnauld, reagiram fazendo a devida distinção: concordaram que as cinco sentenças eram de fato heréticas, dignas de repúdio, mas negaram que elas estivessem no livro de Jansênio, ou com o sentido atribuído pelos acusadores. Alexandre VII, que como cardeal participara da comissão de seu antecessor, confirmou em 1656 a condenação. Tem início um processo contra Arnauld, que logo será expulso da Sorbonne. É nas vésperas de sua condenação que Pascal inicia anonimamente a publicação de suas Provinciais, cartas fictícias trocadas com um Padre Provincial, o superior dos jesuítas numa dada província, acerca do que vinha ocorrendo na Sorbonne. Fazia-se necessária, segundo Paolo Serini, “uma defesa perante a opinião pública, que seguia com vivo interesse a controvérsia, para impedir que os jesuítas alcançassem seu objetivo de fazer passar por heréticos os Messieurs e as religiosas de Port-Royal para assim obter mais facilmente a dispersão dos ‘solitários’ e o fechamento das petites écoles por eles instituídas. E Pascal assumiu essa tarefa”. Afirma que o que estava acontecendo ali eram “disputas de teólogos, e não de teologia”, e manifesta que os inimigos de Arnauld não eram movidos pelo zelo religioso, mas pelo desejo de expulsá-lo.
Quanto à teologia mesma, explica Giovanni Reale que
O que Pascal defende é que as obras não são de modo algum suficientes para obter a salvação sem uma intervenção eficaz da graça divina. A consequência de tal concepção é que a salvação não pode ser alcançada com tanta facilidade pela prática não trabalhosa e, no fundo, cômoda dos sacramentos. Em substância, Pascal é contrário a Calvino e a Lutero, para os quais as obras nada contam; entretanto, também é contrário à concepção de Molina, que não admite que as nossas boas obras e a nossa cooperação à salvação se devam à força da própria graça. Juntamente com Santo Agostinho, Pascal afirma que as nossas ações devem-se ao nosso livre-arbítrio e que, por isso, são nossas, mas que, ao mesmo tempo, elas também são de Deus, pelo fato de que é a graça de Deus que faz com que o livre-arbítrio produza aquelas ações. Em suma, Deus nos faz querer aquilo que poderíamos não querer. Desse modo, vinculando-se à tradição da Igreja, que vai de Agostinho a Tomás, Pascal afirma a ortodoxia da posição de Arnauld e de Port-Royal.
Embora não tenha impedido a expulsão de Arnauld — assinala Roberto Leal Ferreira —, “a lógica implacável de Pascal, a sua ironia sutil, mas demolidora, causaram feridas incuráveis no prestígio da Companhia de Jesus. Denunciadas por Pascal, as teses laxistas de seus casuístas acabaram condenadas em Roma, tanto por Alexandre vii, quanto por Inocêncio xi, anos mais tarde”. E nada disso evitou, sobretudo, o fechamento de Port-Royal em Paris (cuja edifício sedia hoje a Maternidade Val-de-Grâce no Boulevard de Port-Royal) e a destruição, pedra por pedra, de Port-Royal-des-Champs.
Pascal escreveu as Provinciais entre 1655 e 1657. Já desde 1654, porém, após sua segunda conversão, e mais ainda após a “Noite de Fogo”, meditava sobre uma apologia da religião cristã. Quando aquela contenda chegou ao fim, entregou-se inteiramente à preparação dessa grande obra anotando pensamentos, sobre os quais seu terrível estado de saúde não permitia trabalhar senão de maneira intermitente. Mas foi em 1658 que um acontecimento magnífico — Racine o narrou para nós — marcou a vida de Blaise Pascal e determinou o curso da elaboração de sua obra: a cura de sua sobrinha e afilhada Marguerite, filha de Gilberte Périer, ao tocar o “santo espinho” que se encontrava em Port-Royal, milagre atestado pelos médicos e confirmado pela autoridade da Igreja. Pascal foi tocado profundamente pelo episódio e, meditando a respeito do papel dos milagres na Bíblia e na revelação, foi agraciado com novas luzes acerca da religião. “Se há milagres, há portanto algo acima do que denominamos natureza”. Propôs-se, assim, a elaborar uma apologia do cristianismo como um fato indubitável, para converter os ateus, os libertinos leitores de Montaigne — e esta é a origem dos Pensamentos, que não puderam afinal ser organizados numa obra perfeita e acabada, e que são, nas palavras de Sainte-Beuve, “uma torre cujas pedras foram colocadas umas sobre as outras, mas não cimentadas”. Não deveria se basear em argumentos metafísicos, demasiado sutis e evanescentes para a mente mundana, nem em raciocínios comuns baseados na natureza, embora ambas as coisas fossem corretas. O Deus da geometria é o dos pagãos, e o Deus da Providência é o dos judeus; mas o Deus dos cristãos é um Deus de amor e consolação, que se une à alma em seu fundo íntimo, e que é o seu bem. Defenderia que é preciso conhecer nossa miséria e conhecer Jesus Cristo, que tem misericórdia dela. Tinha como certo que Deus pôs marcas sensíveis no mundo e na Igreja para se revelar aos que o procuram com sinceridade, mas que as cobriu de tal modo a não ser percebido por aqueles que não o procuram de todo o coração. Assim, ao se dirigir aos ateus, não começava pela discussão, nem por estabelecer os princípios; aferia, antes, se buscavam a verdade com toda a alma, e agia com eles de acordo com isso, ou para ajudá-los a achar a luz de que careciam, se a buscavam sinceramente, ou para dispô-los a buscá-la, antes de os instruir.
Os últimos anos de Pascal
Se tinha mais ou menos 35 quando se engajou nessa tarefa e começou a anotar os pensamentos, logo aos 35 (quinto ano de seu retiro) Pascal caiu doente de modo que nada mais pôde fazer nesses quatro anos de vida que lhe restaram, preenchidos inteiramente por tormentos. E o estado de agonia a que se viu reduzido nos últimos anos de vida parecia, a ele, o meio de consumar o sacrifício de si mesmo a culminar com a morte (1662). E a história desses papéis que deixou, e de seus muitos rearranjos e edições, pode-se dizer mesmo que ganhou vida própria. Que pensaria Pascal ao ver esse longo vaivém na busca por compreender os bosquejos que, febril de dor, produziu com sua mão trêmula? Será que louvaria os esforços de seus amigos, ou se envergonharia de ver expostas ideias ainda tão imaturas? Admiraria a perspicácia de seus muitos editores, ou estimaria seus arranjos como desastrados e presunçosos? Pois, como expressa Émile Boutroux, de fato “surpreendemos Pascal conversando consigo mesmo nas profundezas de sua consciência; contemplamos, espalhados diante do público, muitos pensamentos nascentes, malformados, ainda não testados, que talvez tivessem rejeitado ou modificados pelo efeito da reflexão”. A perspicácia de Eliot nos ajuda a notar, porém, que, após uma primeira impressão do caráter fragmentário das reflexões, uma segunda leitura atenta revela que a fragmentação está mais na expressão do que no pensamento em si, e cada um dos “pensamentos” não pode ser separado do conjunto, e compreendido em si mesmo como algo completo: “Pascal não era teólogo e, na teologia dogmática, recorreu a seus conselheiros espirituais. Nem era de fato um filósofo sistemático. Ele era um homem com um imenso gênio para a ciência e, ao mesmo tempo, um psicólogo natural e moralista. Como ele era um grande artista literário, seu livro teria sido também sua própria autobiografia espiritual; seu estilo, livre de todas as idiossincrasias decrescentes, era ainda muito pessoal”. Ora, “Pascal é, sem dúvida, um escritor”, diz Boutroux. “As inúmeras rasuras, correções e revisões de que seus manuscritos estão carregados mostram o quanto ele trabalha em seu estilo. Este estilo distingue-se pela sua plenitude. Ele possui, não no detalhe, mas no conjunto, todas as qualidades que arrebatam a alma. Rigor geométrico, paixão, imaginação, arte e naturalidade fundem-se numa indissolúvel unidade”. Ou, nas palavras ainda mais doces de sua irmã, “tinha um espírito tão admirável que embelezava tudo o que dizia e, embora tivesse aprendido muitas coisas nos livros, quando as digeria a seu modo elas pareciam diferentes, porque sabia enunciá-las da maneira como o deviam ser para entrarem na compreensão do homem”.
E, assim, aquele que tanto amou seu próximo fez o que pôde, mesmo em seus pensamentos, para se colocar no lugar do outro, do leitor. Não demonstra as verdades da religião como se faz em geometria, de maneira abstrata. Instala-se no ponto de vista do homem natural, que pensa ser autossuficiente e que nada existe para além de si mesmo. Põe diante de seus olhos a imagem de seu ser, para que possa julgar, por si mesmo, se de fato é capaz de satisfazer-se. E com este fim toma emprestados, muitas vezes, os traços de seu mestre Montaigne, cujos pensamentos, simpáticos e zombeteiros, tornam-se, na pena de Pascal, amargos, perturbadores, desconcertantes. Quer mostrar aos libertinos que um estado de natureza pura, sem nenhum elemento sobrenatural, é, no homem, uma coisa impossível; que o homem encontra a satisfação de suas tendências e se realiza somente em Jesus Cristo. Por isso podemos crer, dando razão a Des Granges, que
Se morreu lamentando não ter terminado essa Apologia, meditada durante dez anos (e em meio a que sofrimentos!), esse livro de caridade em que, como Jesus, “pensava em nós na sua agonia” e com o qual esperava induzir tantos incrédulos a “buscar e encontrar” a fé, julgaria sem dúvida que seus esforços não foram vãos, de vez que há mais de duzentos anos os homens vêm cercando de respeito e admiração esse manuscrito quase ilegível […]. Talvez visse, mesmo, uma intenção da Providência no fato de a morte o ter impedido de terminar o livro. Uma Apologia da religião cristã, apresentando-se, sob esse título, como obra dogmática e edificante, teria atingido um número menor de leitores. Os libertinos e livres-pensadores, a quem Pascal o destinava, teriam hesitado em abri-lo ou tê-lo-iam sistematicamente esquecido.
E assim podemos afirmar, de novo com Eliot, que “por causa de sua combinação única e equilíbrio de qualidades, não conheço nenhum escritor religioso mais pertinente ao nosso tempo”.
Esse homem — que mesmo sendo tão grande em tudo, era simples como uma criança no que concerne à devoção; que não tinha afetação nem hipocrisia em sua maneira de agir, e assim como sabia elevar-se na penetração das mais altas virtudes, sabia baixar-se na prática das mais comuns —, ao receber a Santa Eucaristia, vertendo lágrimas de comoção, recebeu a bênção e, ecoando seu Memorial, disse as últimas palavras: “Que Deus não me abandone jamais”.