Música
4 clássicos da música que são covers e você (provavelmente) não sabia

Tenho um grande amigo de infância, uma mente brilhante, desses que um encontro nunca é suficiente para colocar todo assunto em dia, e uma conversa curta, rápida, tem a duração mínima de uma hora pelo telefone. Esse amigo, por exemplo, perguntou a todas as pessoas importantes de sua vida: “Se você fosse uma planta, qual seria?” E depois tatuou suas respectivas versões vegetais em seu corpo — eu estou lá como um flamboyant.
Outra forma que ele encontrou de marcar suas ideias é bolar frases e fazer camisetas. Uma delas diz o seguinte: “Keep trying, Lou Bega didn’t make it in Mambo No.1” (“Continue tentando, Lou Bega não conseguiu com Mambo No.1“). Fazendo referência ao grande sucesso do final dos anos 1990, “Mambo No. 5 (A Little Bit Of…)”.
Vou contextualizar para você entender melhor o tamanho do sucesso que foi essa música. Em 1999, Lou Bega, cantor alemão (sim, um alemão estourou com uma música que é um mambo, cantado em inglês) lançou “Mambo No. 5 (A Little Bit Of…)”, e foi parar no topo das paradas da Europa, EUA e no Brasil e teve até uma versão para crianças da música promovida pela Disney; em qualquer rádio pop que a gente ligava se ouvia “ladies and gentleman, this is Mambo Number Five”. Se tocava na rádio, tocava nos bailinhos da escola.
Mas o mais interessante para mim nessa história é que, além de Lou Bega, Perez Prado também não emplacou de primeira. E quem é Perez Prado? Compositor e artista que lançou a primeira versão instrumental de “Mambo No. 5”, exatamente 50 anos antes de Bega, em 1949. Sim, a canção que conhecemos é um cover, uma regravação, algo muito mais comum do que a gente pensa.
Nessa lista dos sucessos não inéditos não escapa nem aquela mais pedida dos karaokês, o momento do baile da noiva, nem a rainha do Carnaval, nem o Rei do Pop.
“Evidências”
Vou fazer que nem o Bruno Mars, no show do The Town 2023 em São Paulo. Eu começo e você completa: “E nessa loucura…” “Evidências”, imortalizada por Chitãozinho & Xororó, talvez o maior hit do Brasil, é uma regravação, desprezada na ocasião pela gravadora, mas gravada um ano antes de seu lançamento, pois nessa reunião do desprezo, estava presente o compositor Michael Sullivan (um dos maiores hitmakers do país), que farejou algo ali: “Posso levar para o meu irmão Leonardo Sulivan gravar?” E Leonardo, o Sullivan, gravou pela primeira vez em 1989.
Só que o time de Leonardo também não apostou na música. Quando Chitãozinho & Xororó estavam reunindo o repertório para seu álbum Cowboy do Asfalto (1990), receberam “Evidências” de um dos compositores, José Augusto (aquele de “Aguenta Coração”, “Sonho por Sonho”, entre outros sucessos), e mesmo sabendo que já havia sido gravada, a dupla sertaneja tomou a decisão de regravar, sabiamente.
“New York, New York”
Essa história, por si só, daria um filme. “Absolute Cinema!”, como diz o meme com o cineasta Martin Scorsese, que inclusive é responsável por outro sucesso de karaokê, mas não os daqui. Na verdade, mais que um hino de karaokê é o hino não-oficial de uma cidade. A música “New York, New York”, cujo título correto é “(Theme From) New York, New York” (tema do filme New York, New York) nasceu primeiro dentro das telas, antes de ser regravada e imortalizada por Frank Sinatra — e, se não fosse também uma rejeição, não existiria.
Scorsese em 1977, juntou a dupla de jovens estrelas Liza Minnelli e Robert De Niro para filmar uma comédia romântica musical nova-iorquina sobre um casal de artistas, no pós-II Guerra. New York, New York foi um fracasso de bilheteria, mas trouxe um hino que habita o imaginário até de quem não é estadunidense. A rejeição se deu por parte de De Niro, que, após ouvir a música tema do filme, achou muito “peso leve” e pediu a Scorsese, que solicitou à dupla de compositores John Kander e Fred Ebb uma nova versão. 45 minutos depois voltaram com a versão que conhecemos pronta. De Niro estava certo e, dessa vez, a rejeição se mostrou mais assertiva que em “Evidências”.
“New York, New York”, cantada por Liza Minnelli saiu como single da trilha sonora do filme, mas o sucesso veio na gravação do álbum Trilogy: Past Present Future, de Frank Sinatra, em 1980.
Essa é a canção que ajuda os nova-iorquinos a encontrar resiliência nos tempos difíceis: “If i can make it there / I’ll make it anywhere / it’s up to you” (“Se eu puder chegar lá, eu chegarei em qualquer lugar, só depende de você”). Assim foi nos anos 1980 durante a epidemia de crack e aids em uma NY arrasada economicamente, quando o prefeito declarou essa sendo a música que mostraria a garra dos nova iorquinos, ou quando se tornou propaganda do governo, no pós 11 de setembro, para voltar a atrair o público para os teatros da Broadway ou, mais recentemente, durante a pandemia, como era cantado em coro pela população, diretamente de suas janelas todo dia, às 19h, para homenagear as pessoas que estavam na linha de frente enfrentando a pandemia.
Não só dos momentos difíceis a canção é tema, mas ela também embala a festa da virada mais famosa do ano, o ano novo da Times Square, logo após a contagem regressiva pro “Feliz Ano Novoooo!” E é ela que o DJ toca na hora do baile da noiva, nos casamentos. Pelo menos no meu tempo de banda de baile, era.
“Eva”
E se é para falarmos de festa, Nova York que nos desculpe, mas aqui é Brasil! Terra de Ivete Sangalo, dona da oitava maravilha: o Carnaval de Salvador.
Arrisco dizer que uma das músicas-hino do Carnaval de Salvador e a canção que simboliza o fenômeno que é Ivete desde seus anos de Banda Eva é justamente a música homônima ao bloco, “Eva”, uma regravação de uma canção apocalíptica de 1982, gravada por Umberto Tozzi, estrela da música italiana.
Já em português, “Eva” foi primeiro gravada pela banda paulistana Rádio Táxi em 1983, e já podemos ouvir o icônico solo de guitarra da introdução. Em 1984, “Eva” do Rádio Táxi já era um sucesso, tanto que o Bloco Eva resolveu incluí-la no repertório do bloco no Carnaval do mesmo ano. Pouco depois, Ricardo Chaves, um dos cantores que passaram pela Eva, regravou a faixa em seu álbum homônimo de 1988, mantendo o mesmo solinho de guitarra da introdução. Na gravação de Chaves, na segunda parte da canção, ouvimos o ijexá, ritmo que é a base dos versos de Eva, e escutamos um ritmo marchado tímido que se tornaria um pulsante samba-reggae, na versão com Ivete, marcando os refrões. Dois ritmos potentes e que formam o complexo compêndio rítmico que fizeram a axé music ser um fenômeno musical global e que estão presentes até hoje no léxico sonoro da música baiana, ou como o maestro Letieres Leite (que também foi arranjador de Ivete por muitos anos) cunhou: o Universo Percussivo Baiano, ou UPB.
Dois anos antes do lançamento do álbum que catapultaria Ivete para o mundo, o Rei do Pop, Michael Jackson, esteve na mesma Salvador, justamente para fundir a sonoridade de sua música ao bloco Olodum, sob a genialidade criativa e batuta do mestre Neguinho do Samba, na gravação de “They Don’t Care About Us”, de 1995.
“Blame It On The Boogie”
Nem a Rainha e nem o Rei passam incólumes quando o assunto é fazer uma regravação soar inédita e, no caso do Rei, a história acontece antes mesmo do seu autocoroamento, quando a música pop ainda atendia pelo nome de Disco.
Michael Jackson e os The Jacksons (ou Jackson Five) lançaram, em 1978, a música “Blame It On The Boogie“, composição de outro Michael Jackson, nascido na Inglaterra, mas que sagazmente mudou seu nome para Mick Jackson.
Além de autor da música, Mick lançou a mesma canção dias antes! Esse lançamento quase simultâneo, com Mick Jackson na Inglaterra, pela Atlantic Records, e os Jackson Five, pela CBS, deu origem a uma batalha pela melhor posição nas paradas que ficou conhecida como Battle Of The Boogie (“A Batalha do Boogie”). Não preciso dar spoiler, a versão cover performou melhor, porém, quem saiu e quem sai ganhando numa situação dessas é o autor, que irá colher os direitos autorais — no caso, o MJ inglês.
Mas, como esse lançamento ocorreu tão às pressas por parte da empresa-família dos Jackson? Mick Jackson conta que estava tocando no Midem Music Festival em Cannes, França, no mesmo ano, 1978, quando soube que o pai e empresário da banda, Joe Jackson, havia levado um gravador portátil consigo e gravado a música e levado às pressas para os EUA para ser gravada. Naquele tempo, a gravação física só podia ser entregue em mãos e com a tecnologia digital, então é provável que esse lançamento sairia até antes pela gravadora dos Jacksons. O universo é sábio e faz tudo a seu tempo… Pelo jeito, além de empresário e caça talentos, o Jackson pai também atuava como espião cultural nas horas vagas, ou nem tão vagas assim.
Gosto de mergulhar nessas histórias, porque elas me contam sobre duas coisas distintas, a música enquanto obra, algo intangível e da ordem do inexplicável, e as peripécias do mercado para torná-la um produto. De um lado, temos diversas vozes interferindo, tentando prever o que será sucesso, às vezes dando um palpite infeliz, às vezes trazendo soluções. Do outro temos a voz da intuição, que sopra em nosso ouvido: faça, escreva, grave, lance. E essa última, percebo que é apenas uma extensão da voz da inspiração, que dá à luz a uma obra. Se será sucesso imediato ou não, para a Musa que sopra a canção pouco importa e nem podemos dizer, pois uma canção, quando nasce para o mundo, é livre e foge do controle da imaginação limitada de nós “ser-humaninhos”.
Ainda bem que as reviravoltas que a música pode encontrar são espontâneas, inesperadas e imprevisíveis, como vimos. Mas quantas? Inúmeras, o tanto que couberem durante a sua existência em nossa memória, a única plataforma que poderá eternizá-la.
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