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Como desaceleração da economia da China pode afetar o Brasil

A ascensão da China ao status de segunda maior economia do mundo tem sido a narrativa dominante da economia global nas últimas décadas. Impulsionada por um modelo de crescimento centrado em investimentos maciços e em exportações e industrialização acelerada, a nação asiática parecia destinada à hegemonia econômica incontestável.
Contudo, sinais crescentes de exaustão e vulnerabilidade estrutural sugerem que o “milagre chinês” pode estar se aproximando de um ponto de inflexão. A perda de dinamismo da economia chinesa não é apenas uma questão interna; ela ressoa com força pelos corredores da geopolítica global, redefinindo a competição com os Estados Unidos e lançando sombras sobre parceiros comerciais como o Brasil.
Os dados do PIB chinês nos últimos dez anos revelam progressiva desaceleração, marcando distanciamento significativo da era do “milagre chinês” que, frequentemente, ostentava taxas superiores a 12% anualmente (em considerável medida sustentadas por níveis iniciais de desenvolvimento, correspondentes ao início dos anos 1980, sobremaneira baixos). Se no período pré-COVID-19 (2015-2019) já se observava transição de um crescimento na casa dos 8% para os 6%, refletindo os primeiros sinais de maturidade econômica e desafios estruturais incipientes, a pandemia de 2020 atuou como catalisador das vulnerabilidades subjacentes.
As taxas projetadas para 2024 e 2025, na casa dos 5% ou abaixo, não apenas confirmam a consolidação dessa moderação pós-COVID, mas também sublinham que a economia chinesa segue firme em um regime de crescimento mais lento, distante dos tempos de expansão explosiva que a caracterizaram por décadas.
A anatomia de uma desaceleração estrutural
Os dados recentes desenham um quadro preocupante, indicando uma desaceleração profunda e multifacetada, enraizada em desafios internos que se tornaram sistêmicos. Historicamente, a produção industrial e a construção civil têm sido os motores do crescimento chinês. Entretanto, observa-se tendência de arrefecimento nos últimos anos, que se acentua drasticamente em 2024 e 2025.
Conforme dados do Escritório Nacional de Estatísticas (NBS) em 2025, a produção industrial registrou crescimento anualizado de 5,7% em julho, o ritmo mais lento desde novembro de 2024 e uma queda em relação aos 6,8% de junho, números muito distantes da forte recuperação pós-pandemia em 2021, que registrou taxas anualizadas de 9,6%.
A análise das categorias mostra que, embora setores de alta tecnologia, como a fabricação de automóveis, ferrovias e equipamentos de transporte ainda atraiam capital, a manufatura em geral, particularmente as indústrias de baixo valor agregado, enfrenta severas pressões de sobrecapacidade e demanda. Isso parece indicar que a desaceleração atual seja, mais do que cíclica, estrutural.
O setor de construção civil, por sua vez, registrou declínio de 3,3% em relação a 2024, consoante dados da Oxford Economics. Os investimentos no setor imobiliário, que servem como um termômetro de avaliação de tendências de médio prazo para o setor de construção civil, tiveram queda de 10,6% vis-à-vis 2023. Cumpre destacar que a construção civil tem sido um dos pilares do crescimento econômico chinês, sobretudo nas últimas duas décadas, por meio da absorção de mão-de-obra e da criação da infraestrutura necessária à acelerada urbanização do país. A contração do setor, ademais de atípica, é indicativa de desafios estruturais e cíclicos: após a crise financeira de 2008, por exemplo, a construção civil teve declínio breve, retomando seu nível de crescimento após as medidas de estímulo tomadas pelo governo central. Em 2024, contudo, o governo chinês adotou postura mais seletiva para o financiamento de projetos de infraestrutura, priorizando desenvolvimentos com projeção de retorno qualitativo, a fim de evitar a construção de infraestrutura para a qual não há demanda atual ou projetada.
Além disso, as vendas de imóveis novos e usados têm despencado desde 2021. Os preços médios das casas novas nas 70 maiores cidades do país caíram 0,3% em julho de 2025, perfazendo um total anualizado de -2.8%, estendendo uma fase de estagnação que se estende por 2022 (-2.3%), 2023 (-4.8%) e 2024 (-3.5%)
O investimento imobiliário acumulado nos primeiros sete meses de 2025 está 12% abaixo do mesmo período do ano anterior. Essa contração contínua impacta diretamente a riqueza das famílias, minando a confiança do consumidor e a capacidade de investimento, uma vez que grande parte da poupança doméstica está atrelada ao valor dos imóveis.
Outra frente de combate preocupante se materializa no fenômeno da deflação, cujas causas são multifatoriais, incluindo a fraca demanda interna, a guerra de preços no setor manufatureiro devido à sobrecapacidade e a queda nos preços das commodities globais.
Ao contrário da crença popular, deflação não constitui um indicador positivo, pois tem elevado o custo real da dívida pública, desincentivado o investimento e o consumo (visto que os consumidores esperam preços ainda menores no futuro) e comprimido as margens de lucro das empresas, especialmente as exportadoras, forçando-as a cortar preços para manter a competitividade. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) ano a ano ficou em – 0,1% em julho de 2025, enquanto o Índice de Preços ao Produtor (IPP) contraiu-se em 3,6%, já tendo caído 2,5% em 2024 e 3% em 2023.
Nesse cenário, apesar de ser uma prioridade, a demanda interna tem sido insuficiente para sustentar o crescimento chinês. O país continua a produzir muito além do que pode vender internamente. O investimento em capital fixo (máquinas, equipamentos, construção) tem sido desproporcionalmente alto em relação ao consumo das famílias. Enquanto o consumo representa pouco mais de 50% do PIB, a Formação Bruta de Capital Fixo (investimentos em bens de produção) se mantém em patamares elevados (acima de 45%).
Economias mais maduras, como as dos EUA ou da Europa, tendem a ter um percentual menor de investimentos em capital fixo em relação ao PIB, frequentemente na faixa de 15% a 25%. Nesses países, o crescimento é mais impulsionado pela inovação, produtividade, consumo e serviços, e não tanto pela construção massiva de nova infraestrutura ou expansão industrial em grande escala.
A retração inesperada nos novos empréstimos em yuan em julho de 2025, a primeira em 20 anos, aponta para uma demanda fraca do setor privado. Essa estrutura, baseada na necessidade de exportações crescentes e investimento excessivo, gerou sobrecapacidade e endividamento, e agora se mostra insustentável.
Elemento complicador nesse cenário é o fato de que a China enfrenta um declínio populacional e envelhecimento acelerado, marcando o fim do seu bônus demográfico. A taxa de fertilidade caiu drasticamente, atingindo níveis alarmantes: de 2.9 nascimentos por mulher na década de 1980 para os atuais 0.9. A população total começou a declinar em 2022, caindo de 1.45 bilhão de pessoas para 1.35 bilhão (2025). Também é elevada a razão de masculinidade chinesa, indicador demográfico que expressa a relação quantitativa entre o número de homens e de mulheres em uma população: há 104,5 homens para cada 100 mulheres na China, circunstância que agrava o desequilíbrio populacional do país asiático, onde a preferência por filhos, em detrimento de filhas, é um fator cultural milenar, ademais de incorporada à política oficial de “Um Só Filho”, implementada por Deng Xiaoping em 1979.
A população em idade ativa também está em declínio, caindo de 69% em 2020 para 65.8% em 2025, o que reduz a força de trabalho disponível e impacta negativamente a produtividade. Isso resulta em maior pressão sobre os sistemas de seguridade social e uma base de consumidores que envelhece e potencialmente consome menos.
Implicações políticas e respostas atuais
Não restam dúvidas que os dados apresentados exigem respostas contundentes. Pequim tem tentado estimular o consumo com subsídios para novos pais e programas de troca de eletrodomésticos, além de cortes de juros e injeções de liquidez no setor financeiro. No entanto, essas medidas se apresentam mais como paliativos do que como uma correção de rumos estrutural. A hesitação em implementar um pacote fiscal maciço (economistas sugerem 2 trilhões de dólares, cerca de 12% do PIB atual) deve-se à preocupação com o já elevado endividamento e a relutância em ceder o controle econômico ao mercado ou aos cidadãos, o que implicaria certo grau de redistribuição de poder político.
A prioridade atual parece ser a estabilização e a prevenção de um colapso, especialmente no setor financeiro e imobiliário. A recapitalização de bancos comerciais, por exemplo, visa garantir que grandes instituições possam absorver choques de bancos menores à beira da falência. A política de “involution” (involução, o contrário de evolução) de combate à sobrecapacidade produtiva visa reverter a deflação, mas as medidas têm sido insuficientes para reverter a tendência.
Assim, o governo de Xi Jinping enfrenta o dilema fundamental de reequilibrar a economia chinesa – migrando de um modelo de investimento/exportação para um de consumo interno e superando crises imobiliárias e de dívida – sem minar a hegemonia absoluta do Partido Comunista. As reformas necessárias, como fortalecer a rede de seguridade social ou empoderar o setor privado, são vistas como ameaças ao controle centralizado e à estabilidade política do Partido. Essa tensão significa que soluções econômicas tendem a ser parciais e controladas, priorizando a manutenção do poder político sobre as transformações estruturais profundas que a economia realmente exige, limitando seu dinamismo e recuperação.
A competição geopolítica: EUA vs. China no novo tabuleiro
A perda de dinamismo econômico da China não pode ser dissociada da intensa competição geopolítica com os Estados Unidos, que continua a manter uma postura de contenção, especialmente no que tange ao avanço tecnológico chinês. Enquanto em 2021 a economia chinesa representava 75% da americana, em 2024 esse percentual caiu para pouco mais de 62%. A participação da China no PIB global, que cresceu de 3,5% em 2000 para 18,5% em 2021, recuou para cerca de 16,5% no ano passado. Por outro lado, o PIB americano cresceu de 23% do total global em 2020 para 26.5% em 2024. Convém salientar, no entanto, que esse crescimento (que usa o dólar norte-americano como moeda de referência) ocorreu em um contexto de fortalecimento do dólar (isto é, sua apreciação vis-à-vis outras moedas), diretriz que tem sido, em considerável medida, modificada pelo governo de Donald Trump.
Isso reflete não apenas o crescimento mais lento da China, mas também a resiliência da economia dos EUA e o impacto das políticas de “de-risking” e desacoplamento. A guerra comercial, as restrições tecnológicas (especialmente em semicondutores) e a busca por resiliência nas cadeias de suprimentos por parte do Ocidente criam um ambiente externo menos favorável para o modelo de crescimento chinês focado em exportações.
Para Pequim, a desaceleração econômica representa uma ameaça direta à sua segurança nacional e à sua ambição de reconfigurar o tabuleiro do xadrez geopolítico internacional. A competição com Washington não é apenas econômica ou tecnológica; é uma disputa existencial sobre a futura arquitetura do sistema internacional. Uma China economicamente enfraquecida tem menos recursos para projetar poder global, financiar aliados, desafiar a hegemonia dos EUA – particularmente no Indo-Pacífico – ou implementar sua visão de uma ordem mundial na qual ela dita as regras.
O Impacto no Brasil: Da Bonança à Vulnerabilidade Estratégica
Longe dos centros de poder globais, o Brasil sente as reverberações da desaceleração chinesa de forma aguda. O país, que se tornou profundamente interligado à economia chinesa – e dela dependente, nomeadamente no que se refere à exportação de commodities (agrícolas, energéticas e metálicas – nas últimas duas décadas, sobretudo nas gestões de Lula e Dilma, enfrenta agora uma encruzilhada.
A China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009, absorvendo cerca de 28% das exportações brasileiras em 2024. Em 2023, o Brasil exportou US$ 104,3 bilhões para a China, gerando superávit recorde de US$ 51,1 bilhões. Contudo, essa parceria tem natureza desequilibrada: 90% das exportações brasileiras para a China são commodities, com soja, petróleo bruto e minério de ferro representando 80% da pauta, enquanto o Brasil importa produtos manufaturados de maior valor agregado. Essa dependência de matérias-primas tem exacerbado a desindustrialização brasileira, com a indústria perdendo participação no PIB e um superávit em produtos manufaturados que se transformou em um déficit de US$ 90 bilhões em 2019.
A concentração das exportações em commodities e a “invasão” de produtos chineses baratos no mercado brasileiro geram vulnerabilidades. Se a demanda chinesa por commodities enfraquecer ou se os preços caírem, o impacto sobre a balança comercial e as contas externas do Brasil será severo. Além disso, a profunda penetração econômica chinesa, incluindo aquisições de minas e fazendas e investimentos em infraestrutura (como o projeto da ferrovia transcontinental para o porto de Chancay, no Peru, de propriedade chinesa), levanta questões sobre a independência econômica e a segurança estratégica do Brasil.
A crescente animosidade popular no Brasil em relação à China, com 75% dos brasileiros demonstrando desconfiança, conforme o estudo “Has Brazil Given China Too Much Economic Control?”, divulgado pelo think tank CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) em 2023, sinaliza a percepção de que a relação comercial, embora lucrativa em termos de superávit, não é equitativa em termos de desenvolvimento mútuo e soberania.
A economia chinesa está, sem dúvida, em um ponto de inflexão. Os dados de produção industrial, setor imobiliário, deflação, demanda interna e demografia apontam para uma desaceleração estrutural que será difícil de reverter sem reformas profundas. A falta de um plano robusto para impulsionar o consumo doméstico e a relutância em construir um estado de bem-estar social para reduzir a poupança precaucional são os maiores entraves. O governo chinês parece priorizar a estabilidade política e o controle do Partido Comunista acima das transformações econômicas necessárias, optando por remendos pontuais em vez de reforma sistêmica.
Globalmente, a desaceleração chinesa intensificará as tendências de regionalização e protecionismo, e a competição geopolítica com os EUA se tornará ainda mais acirrada, com implicações para a ordem mundial. Nos médio e longo prazos, especula-se se o atual momento atravessado pela economia chinesa não guarda semelhanças com o início do declínio japonês, no fim da década de 1980/início da de 1990. A China, com sua sobrecapacidade industrial, continuará a “forçar exportações”, o que pode levar a um aumento das tensões comerciais e protecionistas, especialmente com a Europa.
Para o Brasil, o cenário é de alerta. Sem considerar as circunstâncias de equivocado alinhamento político patrocinado pelo governo atual, a elevada dependência de um parceiro em desaceleração e com uma estrutura de demanda desequilibrada expõe o país a riscos substanciais. A reindustrialização, tão desejada, torna-se um desafio ainda maior. Uma estratégia de longo prazo que vise a reduzir a dependência das exportações brasileiras de commodities em relação à China, particularmente no que diz respeito ao agronegócio, via diversificação de parceiros (com ênfase no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e na Índia), é igualmente necessária.
O caminho à frente para o Brasil não é de ruptura, mas de diversificação estratégica – buscar novos mercados, agregar valor às exportações, fortalecer a indústria nacional e reequilibrar a balança comercial para garantir que a parceria com a China seja sustentável e beneficie o desenvolvimento de longo prazo do Brasil, e não apenas o lucro de commodities.
O Brasil, outrora embriagado pelo fulgor do “boom das commodities” (que em ampla medida mascarou, ao menos temporariamente, os efeitos das políticas desastrosas dos governos Lula I e II) e pelo superávit que a China generosamente oferecia, encontra-se agora com difíceis escolhas a serem adotadas. A desaceleração do gigante asiático não é mera flutuação econômica, mas um terremoto que sacode as frágeis fundações de nossa economia, corroída pela desindustrialização e pela perigosa miopia de uma dependência quase colonial.
Enquanto Pequim cambaleia, arrastando consigo a demanda por nossa riqueza bruta, o véu da ilusão começa a cair, revelando a amarga realidade: um país vulnerável, desprovido de uma Grande Estratégia de nação, com um setor industrial abandonado e com uma crescente desconfiança interna sobre o custo real dessa “parceria”. É um chamado ensurdecedor à ação, um grito de alerta para que o Brasil desperte de sua letargia e forje um futuro resiliente, ou se condene a ser um mero eco empobrecido na ressaca de um dragão adormecido.
* Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, pesquisador sênior na University of Central Florida (EUA), ex-secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.