Moda
Assucena celebra a diversidade e a riqueza da memória judaica no Brasil | Cultura
Quando as pessoas descobrem que sou judia, ou quando digo com orgulho de minha identidade judaica, elas demoram a acreditar. Há um certo questionário a priori, para averiguação da veracidade de meu relato. Afinal o mundo inteiro é grande especialista em judeus, menos nós. Nós judeus não vencemos ainda o carma das generalizações dos outros, e acho difícil que vença, uma vez que essa autocrítica dependa muita mais da vontade alheia. Nem Jesus é mais judeu, imagina Assucena?!?!
Esse descrédito vem de alguns arranjos que fogem do perfil mainstream judaico brasileiro, fundado principalmente no Sudeste do país, onde a maioria da comunidade é proveniente do Leste Europeu e Europa Central: maioria branca, muitos com olhos claros e com sobrenomes eloqüentemente europeus. Já a judia que vos fala é parda (às vezes uso mouresca); de cabelos cacheados; baiana e ainda por cima uma mulher trans. É muito informação para a desconstrução do estigma!
Mas se você fosse judia ou judeu, você saberia que a paleta cromática judaica é tão extensa quanto uma diáspora de dois milênios. Saberia que o judeu negro retinto é tão judeu quanto o judeu branco leite. Saberia que povos diaspóricos herdam a miscigenação por vontade ou por violência.
“Mas existem judeus na Bahia?” Evidentemente que não. Existem judeus apenas no bairro de Higienópolis em São Paulo e eles estão TODES fardados de chapéu, cachinhos laterais e terno preto. Imagina quando essa galera descobre que desde o início do séculos XIX havia judeus marroquinos que desbravaram rios amazônidas e que muitos deles são chamados de judeus caboclos?
Ainda bem que existe o Museu Judaico de São Paulo para nos contar lindamente essa história, numa exposição chamada Judeus na Amazônia. Fui recebida pela diretora de comunicação do MUJ, Marília Neustein, que trabalha arduamente pelo reconhecimento da pluralidade da identidade judaica. Entrei emocionada na exposição por vislumbrar a memória zelando por outras geografias, por outros sobrenomes e por outros tipos de rostos, peles e histórias. Me emocionei por ver minha ancestralidade sendo rememorada não apenas pela dor, mas pela beleza e resiliência.
O que sei, é que meus ancestrais desceram do norte do Brasil para mercadejar ouro e tecido nos sertões da Bahia. Desceram aos montes em uma grande caravana de família. Não vieram apenas a mãe, o pai e suas crias, mas avós, bisavós e tios e tias. Essa é uma síntese da migração da família Assayag e Seruya que por corruptela esse último virou Zeruya, das quais também faço parte. Vieram do vulgo Magreb, Norte da África de cidades como Tetuán e Fez no Marrocos.
Não sei se àquela altura ainda falavam haktia, mas traziam a coragem, a fé, a desconfiança e a experiência no comércio como ferramentas de sua jornada. Embrenharam-se por Vitória da Conquista e Jequié, cidades fortes nos negócios, e também desceram a sinuosa serra do Marçal rumando as bandas de Itabuna e Ilhéus; por serem uma região portuária.
Mas por que saíram do Norte? Algumas respostas podem ser elaboradas na exposição Judeus Na Amazônia
Sim! Existem judeus na Amazônia. Muito mais do que vocês imaginam. E uma das peculiaridades dessa história é que ao contrário de outras migrações judaicas que consistiam em formar comunidades apenas em grandes centros urbanos, os judeus marroquinos se espalharam pelas curvas dos rios amazônicos, estabelecendo-se como ribeirinhos. Esse judeus ribeirinhos navegaram tão longe por esses rios que além de se estabelecerem ao longo da Amazônia brasileira, eles também chegaram a formar pequenas comunidades no Peru de Caballococha a Contamana. É surpreendente. Procure saber.
O encontro com a memória é mesmo de impressionar. Sinto-me contemplada todas as vezes que me deparo com o empenho de instituições e profissionais que zelam com critério, esmero e respeito os monumentos da memória. Lembrando que a memória é construída todo santo dia. Construir memória desconstrói estigmas e constrói possibilidades de ser e de sentir o mundo, quando se há a boa fé do bem comum.
Quem sabe depois dessa exposição eu não tenha que me explicar tanto?!?! Parabéns ao MUJ e toda sua equipe! O Museu Judaico de São Paulo abre de terça à domingo e aos sábados é gratuito. @museujudaicosp
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
Quer participar do canal da Vogue Brasil no WhatsApp?
Basta clicar neste link para participar do canal e receber as novidades em primeira mão. Assim que você entrar, o template comum de conversa do WhatsApp aparece na sua tela. A partir daí, é só esperar as notícias chegarem!