Celebridade
Quem foi Harry Haft, o boxeador que lutou pela vida em Auschwitz
Foi o boxeador Harry Haft quem deu o primeiro golpe. Nos minutos iniciais, se manteve firme contra o oponente, a estrela em ascensão Rocky Marciano, que estava em sua 18ª luta como profissional. Perdeu o ritmo no segundo assalto e, na primeira metade do terceiro, foi para a lona depois de sofrer uma sequência de golpes certeiros. Marciano, o vencedor inquestionável, conquistaria o título de campeão mundial posteriormente, em 1952, e o manteria até 1956, quando se aposentou com a marca de 49 conquistas, sendo 43 por nocaute, e nenhuma derrota.
Haft nunca mais lutaria – aquela disputa realizada no Rhode Island Auditorium, em 18 de julho de 1949, seria sua última. Depois de um início impressionante, com dez vitórias seguidas, ele encerrou a carreira com 19 lutas, 12 vitórias e 8 derrotas, todas por nocaute. Na sequência, abriu uma quitanda que o sustentaria ao longo da vida.
Mas a verdade é que sua trajetória como lutador não havia começado em agosto de 1948, quando ele superou seu primeiro oponente, Jimmy Letty. Haft havia aprendido a profissão durante a Segunda Guerra. E da forma mais cruel imaginável.
Detento do campo de concentração de Auschwitz, ele foi selecionado por um oficial da polícia de estado nazista, a SS, chamado Schneider, para lutar boxe nas instalações vizinhas de Jaworzno. Parecia ter o biotipo ideal para a missão e seus golpes de direita tinham o poder de desnortear os adversários. A regra do combate era simples: quem terminasse em pé sobrevivia e ganhava uma quota adicional de comida e, eventualmente, uma cama mais limpa até se recuperar dos ferimentos e se preparar para a próxima sequência de embates. Não havia limite de tempo para as disputas. Em outras palavras, ele foi selecionado para disputar rinhas, como se faz, ainda hoje, de forma clandestina, com galos e cachorros.
Forçado a lutar por sua vida, Haft superou, estima-se, 75 adversários, todos presos como ele, incluindo alguns que haviam se tornado amigos. Quando subiu ao ringue para disputar contra Rocky Marciano, ele utilizava um calção com uma estrela de Davi bordada. E era sempre apresentado para a plateia como “o sobrevivente de Auschwitz”. Usava o codinome para facilitar sua identificação com o público. Mas ficava desconfortável em detalhar como havia feito para sobreviver.
Traumas e lutas
Nascido em 28 de julho de 1925, na cidade polonesa de Belchatow, com o nome de Herschel Haft, ele tinha dois anos quando o pai, Maisha, faleceu vítima de tifo. Foi criado em meio a sete irmãs, que receberam educação judaica pelas mãos da mãe, Hinda – ela mantinha equipamentos de tecelagem em casa e as crianças ajudavam com o trabalho, uma ocupação bastante comum na região.
Seu Bar Mitzvá foi celebrado em 1938, um ano antes da ocupação da Polônia. Foi quando as perseguições começaram. Haft vivia de pequenos contrabandos, que ajudavam a levar dinheiro e comida para a família, num contexto marcado pelas piores condições possíveis de violência. Um episódio, em especial, o marcou profundamente. “Minha irmã mais velha teve uma filha. Apenas duas horas depois, soldados alemães tomaram o bebê e jogaram em um caminhão. Neste dia, perdi minha fé. Era um ser humano com apenas duas horas de vida, e foi arrancado da mãe e descartado para morrer”, ele relataria em depoimento de quase duas horas gravado em março de 1995.
A partir de 1942, ele e toda a família se viram detidos e enviados para diferentes campos de concentração. Haft foi levado a Auschwitz, onde recebeu sua tatuagem de prisioneiro. Depois de algumas semanas, passou a contar com a proteção do oficial Schneider, que o preparou para lutar e organizou um esquema de apostas. “Nós precisávamos entreter os alemães. Eu fiz o que precisava e sobrevivi”, disse em seu depoimento de 1995.
Quando o campo em Jaworzno foi dissolvido por causa do avanço do exército vermelho, teve início a chamada marcha da morte, na direção da Alemanha. Haft escapou, em abril de 1945. Na fuga, matou um soldado alemão que estava tomando banho. Vestiu o uniforme e passou as semanas restantes, até o fim da guerra, se escondendo de vila em vila. Em uma delas, matou dois idosos que o abrigaram em uma fazenda – ele desconfiava que seu disfarce havia sido descoberto.
Nos dois anos seguintes, viveu em um campo de refugiados operado pelos Estados Unidos dentro da Alemanha ocupada. Em janeiro de 1947, ganhou um campeonato de boxe judaico organizado pelo exército americano em Munique. Em 1948, com a ajuda de um tio que vivia em Nova Jersey, emigrou para os Estados Unidos. Em novembro de 1949, casou-se com Miriam Wofsoniker, com quem teve três filhos.
Haft deixou Auschwitz, mas Auschwitz nunca o abandonou. Até o fim da vida, sofreu com pesadelos constantes e surtos de pânico e de violência. Seus gritos durante o sono o acompanharam até o fim da vida e marcaram profundamente sua família.
Biografia e HQ
Em 2006, o filho mais velho, Alan, publicou uma biografia do pai, Harry Haft – Survivor of Auschwitz, Challenger of Rocky Marciano (“Harry Haft – Sobrevivente de Auschwitz, Desafiante de Rocky Marciano”, sem tradução em português). Baseado em dois dias de depoimentos, recolhidos em 2003, que renderam 20 fitas, o livro detalha as lutas de boxe realizadas, geralmente aos domingos. Em geral, Haft encarava mais de um adversário por jornada, a maioria deles em estado lamentável.
“O primeiro oponente foi trazido para o ringue. Harry ficou chocado com sua aparência. Ele viu diante de si um esqueleto meio morto de um homem. Ficou claro para ele naquele momento que não haveria nada justo nessa luta. Harry tinha dezoito anos, era grande e forte. Schneider o manteve bem alimentado, sem trabalho excessivo ou tortura. Harry olhou para o outro lado do ringue e viu o medo no rosto de seu desafiante, e ele sabia que este homem não havia se voluntariado”, descreve a obra.
“Harry olhou para os soldados observando o ringue. Havia uma estranha sensação de alegria na multidão. Eles estavam esperando pelo show. Seria um esporte assistir a um judeu matar outro judeu. Quase todos estavam sentados quando o soldado que atuava como árbitro ordenou: ‘Vai’”, prossegue o relato.
“Harry podia ver que seu oponente estava indefeso e hesitou. Ele podia ouvir os soldados gritando xingamentos antissemitas para eles. Harry sabia o que eles estavam gritando. Eles estavam torcendo para que ele matasse o outro judeu com os punhos. Ele tinha certeza de que eles atirariam nele se ele recusasse. Então ele obedeceu. Na primeira vez que Harry derrubou o outro homem, o árbitro teve que pegá-lo. Na segunda vez que Harry o derrubou, ele estava inconsciente e foi carregado. Schneider ofereceu a Harry um gole de seu uísque como recompensa, mas ele recusou. A luta mal durou cinco minutos”. Nesta época, a sequência de vitórias levou a plateia nazista a apelidar Haft de “animal judeu”.
Produção hollywoodiana
O livro inspirou uma versão em HQ de grande repercussão. E, principalmente, o filme A luta de uma vida, lançado em 2022, com direção de Barry Levinson, o mesmo de Rain Man, Bom Dia, Vietnã e Mera Coincidência, com o ator Ben Foster no papel principal.
A produção relata os horrores do campo de concentração, mas também relata a história da busca por uma noiva, também detida durante a guerra – ele acabaria por encontrá-la, na década de 1960, quando os dois já estavam casados com outras pessoas e ela estava à beira da morte. A luta contra Rocky Marciano, aliás, teria sido agendada como uma forma de alcançar a notoriedade necessária para que o nome de Haft saísse nos jornais e a notícia chegasse até a moça.
Como relata uma reportagem do jornal The New York Times produzida na época do lançamento, a produção do filme envolveu descendentes de outras vítimas do holocausto, “incluindo duas atrizes que são netas de sobreviventes, e a roteirista, Justine Juel Gillmer, cuja avó materna serviu na resistência dinamarquesa que resgatou a maioria dos judeus daquele país. Matti Leshem, um dos produtores, é filho de um tcheco que durante a guerra estava falsificando documentos que eram usados para fornecer aos judeus identidades cristãs. Seu pai não conseguiu persuadir sua mãe e irmã a fugir, e elas pereceram em Auschwitz e Terezin”. Como declarou Leshem, “Harry Haft foi o exemplo mais extremo de alguém que teve que criar uma vida moralmente insustentável para si mesmo ou morrer.”
A avó de Ben Foster imigrou da Ucrânia na década de 1920 para escapar da perseguição soviética. E o próprio diretor foi atraído pelo enredo porque ele despertou suas memórias da época em que, por algumas semanas, dormiu no mesmo quarto de seu tio-avô, Simcha. Ele tinha seis anos e ficou impressionado com o familiar: “Toda noite, ele acordava gritando e berrando em uma língua que eu não entendia — repetidamente. Algumas pessoas são assombradas e não conseguem superar, e isso afeta suas relações com as pessoas ao seu redor.”
Em 2007, meses antes de morrer de câncer de pulmão, aos 82 anos, Haft foi introduzido no Hall da Fama Nacional do Esporte Judaico. Um jornalista perguntou se ele tinha algum arrependimento. Ele olhou para seus punhos e disse: “Meus arrependimentos são as vidas que passaram por essas mãos”.