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A culpa é sempre da mulher: 'Disclaimer' escancara o velho hábito de julgar o comportamento feminino

A roteirista Ana Reber analisa a série ‘Disclaimer’, da Apple TV, em que a personagem vivida por Cate Blanchett tem a sua vida destruída após a revelação de uma possível traição conjugal Quando um roteirista assiste um filme ou uma série, a gente enxerga muito mais do que uma história se desenrolando diante dos olhos. É como ver as horas num relógio onde as engrenagens estão todas ali à mostra e a gente já prevê, como numa corrida de Uber, para onde estamos sendo levados. Ainda assim, ao assistir a série Disclaimer, meus doze anos de experiência foram pro ralo. Fui totalmente manipulada. (spoilers a seguir) Durante a maior parte dos episódios detestei a protagonista para no sétimo capítulo descobrir que estava completamente enganada sobre ela. Desliguei a tevê perturbada, pensando como logo eu, roteirista, quarentona calejada, pude cair nessa? Fruto do roteiro bem escrito? Também. Mas acho que o trabalho do diretor foi facilitado porque é perversamente saboroso condenar os outros. Ainda mais quando esse outro é uma mulher. Esse é o gosto amargo de Disclaimer. (Se você não foi enganada como eu fui, parabéns, quero ser sua amiga).
Como o próprio Cuarón disse em uma entrevista, a série não é sobre o cancelamento e sim sobre o julgamento impiedoso de Catherine, uma mulher forte, linda, reconhecidamente competente. Quer pecado maior? Anatomia de Uma Queda também caminha por essa trilha e meu Deus, que filme. Fiquei me perguntando: tanto no longa quanto em Disclaimer, se a personagem fosse homem, seria diferente? A confirmação da minha suspeita veio quando uma amiga que assistiu The Undoing (uma série onde ficamos em dúvida sobre a culpa de um homem) confessou que, ao contrário de Disclaimer, ela torceu até o fim para que o personagem de Hugh Grant fosse inocente. Então por que não torcemos pela inocência da personagem de Catherine se sabemos desde o começo que a história está sendo contada sob um viés provavelmente distorcido?
Porque enxergamos e julgamos as mulheres de formas muito diferentes. Nell Scovell, uma roteirista que conta os bastidores de ser mulher em Hollywood, fez em seu livro uma tabela divertidamente triste comparando como somos tratadas em relação aos nossos colegas. Se um homem argumenta sobre algo, é ponderado. Se uma mulher argumenta sobre algo, ela é difícil. Se um homem negocia mais dinheiro, é esperto. Se uma mulher pede aumento, ela é louca. Se um homem confessa que está passando por problemas com álcool, ele é um coitado. Se uma mulher confessa a mesma coisa, ela é louca e difícil. Não é à toa que a personagem de Cate em Disclaimer tenta a qualquer custo enterrar o passado.
Como a mulher brilhante que é, ela sabe, ou pelo menos intui, que não importa o que ela diga, ela será condenada. Prima Face, outra obra maravilhosa com a Débora Falabella, também fala disso. Mesmo quando uma mulher é a vítima, ela recebe o tratamento de algoz. E não adianta dizer que só os homens fazem isso conosco. Queira ou não o machismo está nos nossos poros e eu, a roteirista, feminista engajadadona, caí como um patinho. É duro, incômodo olhar para isso, mas é preciso arrancar o machismo rápido e com força, como a depilação de virilha cavada. Mas olha aí o machismo atacando de novo: quem disse que precisamos depilar um pêlo sequer? Somos cúmplices dos pecados que nos matam.
Cate Blanchett
Divulgação
É batido esse discurso? Sem dúvida, mas desde que culparam Eva pela maçã roubada parece que ainda acreditamos na culpa dela e nas nossas. Não basta sofrer abuso. Ainda nos perguntamos “mas quão curta era minha saia quando passaram a mão em mim?” “Será que não fui clara o suficiente com o colega de trabalho que está me assediando?”. Fiquei chocada ao ouvir que mesmo assistindo Disclaimer até o fim e descobrindo que a personagem foi abusada, a mãe de uma amiga ainda duvidou: “será que aquela mulher estava mesmo falando a verdade?” Mas a culpa não é dessa senhorinha. Ela foi educada por séculos de literatura, cinema, arte, feitos pelos homens. Onde somos retratadas como megeras, loucas, mentirosas. A própria Cate Blanchett, ao ler o livro que originou a série, também duvidou no começo da inocência da personagem. Precisamos parar com isso. Precisamos ler mulheres, assistir mulheres, ouvir outras mulheres. A série pode até dar voz à vítima só no último episódio. Nós não.
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